As guerras da distribuição digital.
É um mantra repetido vezes sem conta, desde que os primeiros teóricos da Internet começaram a teclar as suas teorias: "information wants to be free". A frase é, na verdade, bastante antiga, data desse icónico ano de 1984 e foi proferida pelo senhor Stewart Brand (aqui ao lado). Completa, é qualquer coisa deste género: "Por um lado, a informação quer ser cara, por ser tão valiosa. A informação certa no lugar certo muda pura e simplesmente a nossa vida. Por outro lado, a informação quer ser gratuita, visto o custo da sua produção ser cada vez mais baixo, dia após dia. Estas duas tendências estão portanto em conflito uma com a outra."
A primeira nota é óbvia. A frase foi dita num contexto económico, a tradução nunca seria "a informação quer ser livre" mas sim "a informação quer ser gratuita". A passagem do tempo, a disseminação das plataformas de distribuição gratuita de conteúdo (legais e ilegais) e a dificuldade em estabelecer plataformas concorrentes pagas, acabou por fazer equivaler gratuitidade e liberdade. No contexto da informação, se pensarmos um pouco, esta equivalência traduz-se numa espécie de democracia radical da informação. Isto é tanto mais relevante quando pensamos que o domínio da informação e o controlo dos seus meios de distribuição estão desde há milhares de anos estreitamente associados ao poder, sob a forma de censuras, dogmas, propaganda, imperialismos culturais, linguísticos e fenómenos semelhantes.
Vem isto tudo a propósito da condenação em primeira instância dos quatro suecos responsáveis pelo Pirate Bay, ocorrida na sexta-feira passada. É mais um episódio na guerra que a frase de Stewart Brand tão bem sintetiza, mas não é de todo um sinal definitivo do que está para vir. Vale a pena lembrar que um dos principais agentes da revolução na indústria musical, o infame Napster, foi igualmente condenado e teve de fechar no formato "livre" que tinha. Não foi isso que impediu a continuação da mudança de paradigma que ainda hoje está a ocorrer.
É por isso improvável que mesmo uma condenação do Pirate Bay no final da batalha, corresponda a uma vitória dos tradicionais detentores da cadeia de valor do audiovisual no final da guerra. É claro que nada disto é simples e a indústria observou com atenção o descalabro dos modelos tradicionais na música. Sites como o Hulu, acordos com o You Tube, o esmagamento temporal das janelas de exibição, estreias globais, todos são indicações de que a história poderá não ser a mesma.
Seja como for, se no caso da música tivemos os mashups como primeira expressão criativa a surgir das guerras da distribuição, no caso do audiovisual, entre webisodes e outras experiências, coisas interessantes vão também vendo a luz do dia. Diz a Wired que é precisamente a partilha de ficheiros que pode salvar o negócio. Mas a Wired escolheu o seu lado há muito tempo.
O próximo campo de batalha destas guerras está já definido e é-me especialmente caro. Se os jornais lutam há anos por encontrar modelos de sobrevivência rentáveis online, na área dos livros, a questão foi sendo adiada. Porquê? Talvez por os leitores serem os mais fetichistas dos consumidores culturais e o apego ao livro enquanto formato ser grande.
A generalização dos leitores digitais de e-books e a entrada em cena da Amazon com o seu Kindle 2, parece ir acelerar a mudança de paradigma. A crescente popularidade do Scribd serve como contraponto do outro lado da barricada. Como dizia o outro, prognósticos só no fim do jogo, mas o que me começa a interessar mais uma vez é como a tecnologia pode modificar a própria natureza da criação.
Este artigo no Wall Street Journal, partes iguais de futurismo, euforia e distopia, dá-nos uma imagem do futuro que, se pensarmos um pouco, transpõe para a escrita criativa (para uma dada definição de criativa) aquilo que era o modelo de origem da própria World Wide Web; um modelo de hipertextualidade (volta Julia Kristeva, estás perdoada) facilitado e catalisado pela tecnologia. Como autor, arrepio-me, mas interesso-me.
O post já vai longo, mas a propósito destas guerras entre pago e gratuito, apetece-me ainda citar o autor do "The Wire", David Simon. Diz muito boa gente que é a melhor série de televisão de sempre e a propósito precisamente de televisão, diz ele: "Os jornais dizem "É impossível voltar atrás agora que abrimos esta caixa. Como é que se pode cobrar por conteúdo? A informação quer ser gratuita." Isso é tudo treta. Se bem me lembro, há trinta anos não havia um americano que pagasse para ver televisão. A televisão era gratuita há trinta anos. Agora toda a gente paga 16, 17, 70 dólares por mês para ver televisão".
Eu diria ao senhor Simon que se não fossem esses modelos de negócio, o "The Wire" provavelmente nunca teria existido. E ele concorda, claro. Seja como for, não há almoços grátis e o meu conselho final é o da Garganta Funda de Watergate ao Woodward e ao Bernstein: "Follow the Money!"