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luís soares

Blog do escritor Luís Soares

Os Adultos

"Os Adultos" é o meu segundo romance, saiu em 2005 na Oficina do Livro. Encontrei-o disponível para compra online em dois locais: no site wook.pt, clicando aqui, e no Mediabooks da Leya, clicando aqui. Como sempre, seguindo a tag os adultos descobre-se outras coisas no blog sobre o livro.


O que me conduziu a esta história?

O que eu quero realmente saber é isto: a vida melhora? Este é um livro sobre a idade adulta, a maneira como nunca podemos voltar atrás. Quais são os limites dos nossos desejos? O que nos impede de os realizarmos? O que nos liga aos outros e que lugar ocupam na nossa vida? Esta é a história de três adultos e três adolescentes, daqueles que os rodeiam, da forma como se tentam libertar das suas vidas, no mundo real e no mundo virtual dos seus medos e vontades.
Tiago, Jorge e Eva estão a acabar o décimo segundo ano e o fantasma do futuro pressiona-os a tomarem decisões sobre o próximo passo nas suas vidas. Na Net contudo, são como peixes dentro de água.
Salvador, Helena e Madalena estão ligados por laços familiares que ameaçam desfazer-se a qualquer momento. A intromissão da Net, com as suas máscaras e equívocos perturbará para sempre a sua existência. Um computador portátil abandonado no Natal vai lançar em movimento uma série de acontecimentos inesperados que vai ter o seu desfecho trágico numa praia deserta.
E afinal quem é Lídia? Qual o papel de Alex e das gémeas doidas nisto tudo?
Depois de um relance do desfecho, a acção abre sobre um baile de finalistas, ponto inicial de três curtos dias de paixão (em todos os sentidos da palavra). São o desenlace de um enredo que, tal como o tempo vai aquecendo, tece os seus nós na vida das personagens.



De onde veio este livro?


O enredo aqui não forçou as relações, elas foram surgindo de forma mais orgânica, em laços familiares ou de amizade. Muita coisa ficou de fora do texto final, por um motivo simples: as personagens foram sendo enriquecidas ao longo da escrita com passados complexos, rios de acontecimentos onde o seu presente desaguava como estuário. A invasão de todo este passado ameaçava tolher o ritmo do desenrolar da acção.Tomo notas em blocos diversos e nos formatos e momentos mais variados, ao telemóvel, na margem de outros textos. Tudo isto ganha forma final ao computador, onde o texto sofre constantes alterações de pormenor e de vez em quando revoluções estruturais.
Os Adultos nascem ainda durante a escrita de Aquariofilia e o processo criativo foi semelhante. As personagens começam a viver na minha cabeça e a encontrar os seus lugares naturais em sítios que me fascinam ou contextos que me interrogam com a sua possibilidade de sentido. Sons e imagens, impressões instantâneas contribuem tanto para a escrita como estes rabiscos.

A maneira como o pai de Carolina perdeu a fortuna da família ou a manhã em que Salvador acordou para a notícia da morte de sua mãe foram algumas das vítimas deste movimento.

Os lugares têm uma carga simbólica forte e existe alguma sobreposição entre a sua geografia e uma geografia dos desejos e emoções. As personagens não se conseguem desligar dos seus passados e, no caso dos adolescentes, das dúvidas sobre o seu futuro. E sempre o momento em que estão, o lugar onde acontecem os condiciona, para o melhor e para o pior.

 

Personagens Principais


Salvador

“Pedra feita movimento, avança para ela com o seu andar pesado e um esforço de sorriso, a barba por fazer, o cabelo como sempre desalinhado, uma camisa aos quadrados e umas calças de ganga, sapatos de vela. Eva não se consegue habituar a vê-lo assim, vestido de forma descontraída, andar solto, como se fosse só outro homem.

(…)

Quando era criança, desejava qualquer coisa nova todos os dias: que não chovesse na manhã seguinte; que o meu pai voltasse da sua vida de marinheiro e da febre que o tinha levado; ser o melhor escritor do mundo, sem saber bem o que isso seria; que a minha mãe me sorrisse mal acordasse, que o meu cabelo fosse liso; que o meu corpo fosse mais pequeno, mais fácil de arrumar na cama curta. Desejava coisas ao adormecer, esperando ao acordar vê-las realizadas, por intervenção de uma qualquer fada madrinha.”

 

Madalena

“Está esticada no sofá, pés a cair para o tapete, braço em curva para além da cabeça e do cabelo, expondo o sovaco liso e moreno. Parece ela própria, um quadro, Modigliani ou Goya talvez, desnuda. Salvador senta-se, no chão, na obscuridade e olha a mulher. Gosta mais dela assim, sem a maquilhagem com que sempre se mascara, uma armadura contra o mundo, um disfarce. Para Madalena sempre foi importante o que os outros pensam, a convenção, a sociedade onde se mexe com a força estonteante da sua beleza. Contempla o tom dourado da pele como se fosse um enigma.”

 

Helena

“Olha Helena com curiosidade, os cabelos pousados nos ombros, parecem tingidos de loiro, talvez já para disfarçar brancas, as calças de ganga, velhas e gastas, a t-shirt roxa que lhe assenta bem, os braços morenos, não percebe se é a cor natural ou efeito do Verão. Que idade terá? Talvez já mais de quarenta, mas bem conservados.

(…)

Tenho um problema com a juventude. Ou se calhar tenho um problema com a idade em geral, a minha e a dos outros. Porque é relativa. A sua em relação à dos outros. O seu interesse de anos pelos mais novos começa a dominar-lhe a vida e os mais velhos deixam de lhe amotinar o desejo. Já só os jovens lhe atiçam essa rebeldia e contudo não os consegue compreender. Essas pessoas, vinte anos mais novas que eu, são-me opacas, completamente opacas. Não faço ideia do que as move.”


Eva

“Apenas durante alguns meses, mesmo no princípio da puberdade, Eva foi maior que as suas amigas e colegas, o seu corpo mais desenvolvido, as formas mais arredondadas, numa altura em que os rapazes ainda não reparavam sequer nisso. Os seus volumes precoces, sobretudo no peito, embaraçavam-na mais do que a orgulhavam. Logo parou de crescer, enquanto as outras espigavam, passavam de crianças a mulherzinhas. Nunca calçou mais que o tamanho 34, nunca passou da altura do ombro do pai. Sempre esteve deslocada, primeiro precoce, agora como se fosse uma menina ainda, uma bonequinha em quem ninguém repara.

(…)

Passa as mãos pela pele, uma carícia arrepiante. Todos os poros levantados, todos os cabelos eriçados, vem um vento fresco da escuridão, lava-lhe a cara com um sorriso. A mão desce do peito para o umbigo, desenha um círculo em volta, hesitando em descer, os primeiros pelos, pretos, escuros contra a pele, tão clara.

(…)

Quase vinte anos e nunca tinha visto assim um nascer do sol. É isto ficar mais velha, lamentar as coisas que ainda não tínhamos feito e fazê-las e perceber ao fazê-las que nunca poderemos voltar a fazê-las pela primeira vez. É isto. E até se lembra de estar acordada a esta hora, ainda na noite do baile, mas nunca assim, contemplando o momento. Estava demasiado intoxicada consigo própria.”


Tiago
“Tiago sente cada músculo do corpo enquanto se curva num salto e mergulha na água límpida, por trás da onda que debaixo dos pés rebenta em espuma, braços o mais longe possível, abdominais esticados, pernas em cunha rasgando o ar. Sacode-o o esticão da prancha no tornozelo e toda a energia, todo o prazer daquele instante, ossos, carne, tendões, pele, cabelo. Adivinha cada molécula que lhe desce pelas pernas, hidrogénio, oxigénio, cada pelo, sinuoso e aloirado, cada poro, voraz, mordendo-lhe as canelas de desejo, o tecido dos calções colado ao sexo, impele-o contra a água. Volta à superfície e dá uma braçada para agarrar a prancha, abraçá-la, deitar-se em cima dela. Dezoito anos. Vem-lhe do nada à cabeça, o número. Não faço a mínima ideia do que significa ter dezoito anos. A água podia estar mais quente, sem fato não lhe vai apetecer ficar muito tempo. Seja como for, não podia estar mais feliz. O lugar é aquele.”

Jorge
“Usa óculos desde o oitavo ano, é um pouco mais baixo e magro que Tiago, quase escanzelado, testa alta, nariz levantado. Nunca teve o hábito de olhar ao espelho e apenas o faz de relance antes de sair de casa, para se assegurar que é mesmo ele quem enfrenta o mundo e os seus labirintos.

(…)

“Jorge nem está bem ali, está num filme, é o gajo de ar perdido num filme de terror. Um road movie ou um filme de zombies. Até estaria em casa a estudar matemática, mas o planeta agora é dos zombies. Vou sobreviver? Tiago foi degolado na casa de banho pelo gigante que saiu da loja. O empregado tem uma carabina de canos serrados e planeia matar-nos mal acabemos de abastecer. Ou talvez seja o herói solitário. Toda a restante civilização morreu já. – Só falta ela, agora.”


Lídia
“Sentada no colo do pai, o braço grosso em torno da sua cintura, um fato de banho que mal enche, coisa pirosa com folhos cor-de-rosa nos ombros. Tem um chapéu enfiado na cabeça, apesar de estarem ambos à sombra de um guarda-sol. O pai mal lhe liga, segura-a, assim pequena, no seu enorme abraço, enquanto lê um livro seguro na outra mão. Lídia olha os meninos chapinhando na beira da água, fazendo castelos de areia, correndo assustados das ondas e da espuma. E não sente vontade nenhuma de sair dali. Por ela ficava sentada assim, naquele colo, o resto da vida, indecifráveis ainda as letras na página onde o pai ferra o olhar, o mundo grande de mais, o conforto das costas apoiadas no peito paternal, pode adormecer na curva daquele cotovelo e nada de mal lhe vai acontecer, nunca. Aquele abraço é para sempre, mesmo com olhos distraídos no papel. Se cair, ele apanha-a.”


Locais da Acção


Casa de Salvador
“Passa os olhos pelas estantes da sala, capas duras e moles, edições recentes, antiguidades, poemas, peças de teatro, romances, contos. Como uma praga os livros alastram na casa, compra-os e lê-os compulsivamente. Encheram o escritório, transformado em biblioteca, agora também a sala.

(…)

No silêncio súbito parece ouvir pela primeira vez os sons da casa, o zumbir do frigorífico na cozinha, a cidade abafada pelos vidros fechados, a vizinha do andar de cima caminhando com os seus saltos pontiagudos no chão de madeira, a própria respiração, o sangue afluindo ao cérebro. Nunca gostou muito daquela casa que era da família de Salvador. Parece-lhe sempre que vai dar de caras com o seu pai ou mãe, ao virar cada esquina, ao entrar cada porta. A área e a localização são excelentes, contudo, teria sido uma burrice, viverem em qualquer outro sítio. É de nunca os ter conhecido, para ela são como fantasmas. É normal, todas as casas são assombradas, de uma maneira ou de outra.”


Escola
“O declive natural onde se aninha a escadaria da entrada não escapa ao ar quente almorávida subindo de sul para norte, do interior para o litoral, arrasando florestas, bosques e simples mato à mínima faísca. Os jardins mal cuidados definham ressequidos, o metal da vedação queima. Ali mesmo em frente ao portão, mais adiante, na sombra dos desfiladeiros separando os blocos, a última luz pinta o céu de um azul excessivo antes da escuridão. Entre os alunos vibra contagiante a vontade da festa no espaço cavernoso do pavilhão gimnodesportivo. Imaginam-no um reduto de frescura e liberdade, uma catedral na sombra clemente da noite, onde poderão libertar a electricidade acumulada, mas também ali a atmosfera adquiriu a consistência pastosa e picante que por todo o lado tolhe a acção.”

Lisboa
“Aquela árvore vai cobrir o chão de flores roxas mais próximo do Verão, é um jacarandá, há uma linha deles, gingando imóveis à porta de sua casa, quarteirão do lado. As andorinhas nidificam no beiral mais alto do prédio. O que teria aquele rapaz pálido e calado? E havia o homem da traqueotomia também, barba grisalha por fazer, fato de tweed cheirando a naftalina. Que faziam eles ali, à sombra do jacarandá e das andorinhas?

(…)

E nas cidades, o sol que nasce é revelador das esquinas dobradas pelos candeeiros públicos e tem tons de sabores de gelado, natas, caramelo suave, morango sem pedaços e baunilha. Escapando ao calor da rua, Tiago, Jorge, esperam o seu momento, esperam outro lugar, interior e exterior. E esse sol de Verão a nascer esculpe em permanência o claro e o escuro, pode abrasar tudo de luz ou esconder passagens secretas. Para onde?

(…)

O percurso só serviu para lhe lembrar os motivos do seu desconforto na cidade, o excesso de carros, a temperatura, o pó, o lixo, a agressividade branca da luz, as obras, a desordem.”

 

Londres

“Onde haverá morangos saborosos? É tudo tão caro, aqui. Libras e mais libras. Strawberry fields forever... Talvez os turcos tenham morangos. Morangos perfeitos, vermelhos e suculentos, embalados em caixas de plástico, almofadados com aquele material de embrulho feito de bolhinhas de ar que viciam ao rebentar. Nada daqueles amontoados da sua infância, caixotes forrados a papel pardo, o sumo a manchar a madeira. Este país é tão mais civilizado.

(…)

Em Londres faz um frio tremendo, mesmo para Dezembro. O termómetro desceu abaixo dos zero graus, mas não chove e o vento é uma brisa, mais forte junto do rio, onde sopra ríspido com a corrente castanha e baça. O ar está cristalino e cortante, o fumo mal cheiroso dos escapes, os odores de comidas de todos os cantos do mundo, a respiração de milhões de pessoas desfazem-se num céu liso e opaco, pesa toneladas. O verde de Hyde Park acorda coberto de geada e na pista de gelo ao canto de Marble Arch, os patinadores acotovelam-se ao som de canções de Natal. É o meio da semana e a cidade vibra com toda a sua força, toda a sua possibilidade de aventura, de desgraça, habitantes, visitantes, desalojados, trabalhadores, turistas, pedintes todos envolvidos no seu frenesim imparável. A urgência da véspera de Natal sacode tudo.”


Norte
“O pai na quinta. O pai e a mãe a cavalo à beira do Douro. O primeiro banho do mano mais velho na casa de banho de cima, grande. A carrinha Mercedes acabada de lavar a primeira vez, brilhante, o pai de mangas arregaçadas em frente, uma semana antes de Eva nascer. Sente a vir a tristeza costumeira, a melancolia da saudade. A avó no casamento dos pais, segurando cada um no seu braço. O pai no funeral da mãe, três dias depois de Eva nascer, pela primeira vez o ar perdido no mundo que sempre lhe conheceu.

(…)

Não sente o apelo do norte que lhe devia estar no sangue, o chamamento da terra, das águas profundas do rio roçando nas encostas cobertas de vinhas. Os irmãos, mal puderam, pisgaram-se. A avó definhou rapidamente, a viver num subúrbio de Lisboa. Não durou mais de três anos e aos poucos o apartamento que parecera minúsculo quando primeiro o tinham ocupado (Não há escadas! Nunca morei numa casa sem escadas!), tornou-se numa mansão para pai e filha. Para que havia ela de querer voltar para o Norte? Para uma casa de que mal se lembra?”

 

Ponte

“Quase não há trânsito na ponte e as duas margens do rio cintilam em pontos de luz alaranjados. A massa de água, escura e solene, não revela nada de si.

(…)

O zumbido da ponte parece o grito de muitas vozes, de um exército ao longe, preparando-se para atacar em nome de um santo ou de um rei, cujo nome não chegamos a perceber. Ou então é apenas uma multidão num estádio, durante uma jogada de perigo, coração na boca, logo após um golo, um outro tipo de exército que delega as suas guerras em homens de calções. É apenas o maquinismo de uma máquina imensa, feita de carros, chão de metal, vento e margens. Um som incessante de que Álvaro de Campos gostaria, um r-r-r-r-r-r eterno.”


Praia
“A casa dá directamente sobre a praia, num declive suave a converter-se em areal deserto estendendo-se para norte, fechado a sul por uma falésia imponente e instável, a desmoronar-se em rochedos, grandes dentes no mar. O interior redondo das ondas brilha baço, lacado a azul e verde, antes de se enrolar numa curva perfeita e rugir a branco e desfazer-se em espuma. Há uma nitidez eléctrica nas coisas todas, tingida das cores demasiado quentes do incêndio reflectindo-se no céu. A superfície da água está de um cinzento escuro, cor de fumo. Ainda alto, o sol permanece pálido e apenas no horizonte para onde mergulha se vislumbram rasgos da sua luz prateada e fulgurante. O mundo parece orlado de expectativa, com aquele brilho distante, com as chamas ao longe nos montes, com a areia marcada apenas pelo vento e pelas patas das gaivotas, um sorriso onde o mar desenha ondas perfeitas. Não interessa se a casa não for a da sua memória, o lugar é aquele.”