Este texto não é sobre a situação política atual. Sobre esse assunto, continuo a achar que há outra gente a dizer coisas que vale a pena ler e ouvir. Até a Manuela Ferreira Leite, of all people, que por acaso um amigo em tempos me disse que era uma pessoa de bom senso condicionada pelas circunstâncias. Este texto é sobre coisas ao lado.
Michael Ondaatje sempre foi dos meus escritores favoritos e dos poucos de que li (quase) tudo. É impossível ler tudo o que um escritor escreve, muito fica sempre apenas para ele. Tudo começou com a adaptação ao cinema de "O Paciente Inglês". Depois fui lendo poesia, prosa, até ao mais recente "The Cat's Table".
No que Ondaatje escreve, duas coisas sempre me tocaram mais que tudo o resto: o lirismo da escrita, burilando frases, colhendo palavras, e uma visão política do mundo, no sentido nobre da palavra, paficista, internacionalista. Ondaatje é ele próprio um cruzamento de oriente e ocidente, norte e sul, quer pela sua biografia, quer pela forma como isso transparece nas suas histórias e na forma como as conta.
"O Paciente Inglês", contudo, como outras, é uma história que tem um contexto histórico real e se inspira numa figura real, László Ede Almásy de Zsadány et Törökszentmiklós, um fascista húngaro que colaborou com os serviços secretos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Nada que se recomende. O romancista pega-lhe no nome, em alguns factos e constroi uma história de amor que poderia justificar alguém fazer as coisas que faz. Muito mais haveria a dizer, mas já lá vamos.
Entretanto descobri também a escrita de Anne Michaels, também ela canadiana, em forma e em conteúdo com muitas semelhanças a Ondaatje. Gostei particularmente da sua poesia e de um romance de nome "The Winter Vault" que tem como contexto a mudança de lugar do templo de Abu Simbel (na foto) por causa da construção da barragem de Assuão no Nilo.
Passado algum tempo, descobri uma conversa entre Terry Rigelhof e Gordon Lockheed precisamente sobre estes dois autores e embora a discussão e a agressividade na abordagem do assunto não me tenham feito gostar menos de Ondaatje ou Michaels, fizeram-me, é claro pensar. Só uma citação: "Michaels is a poet and her prose works, Fugitive Pieces (1996) and The Winter Vault (2009), aren't novels. Not in my books. What are they then? I'd say propaganda – misleading publicity, deceptive information, distorted educational tracts." "That's harsh."
Não conheço suficientemente a literatura canadiana, nem tenho conhecimentos e capacidade analítica suficiente para entrar na discussão, mas vale a pena ler toda a conversa e ficar a pensar sobre um assunto bem antigo, o lugar da verdade histórica na ficção.
E agora sim, entro eu.
Quando entrei na faculdade, fi-lo convencido de que o meu futuro era o jornalismo, de que contar histórias sobre a realidade, procurar a verdade do mundo e dos seus momentos eram missões que me recompensariam pessoalmente mais do que qualquer outra. Depois aconteceram duas coisas: uma, li a "Conversa na Catedral" do Mario Vargas Llosa; outra, numa aula, um professor disse que "o jornalismo não era uma atividade para pensar, mas sim para fazer". E eu sempre gostei muito de pensar. Pior do que isso, sempre gostei muito de inventar. Não podia ser jornalista.
É claro que estes meus pruridos morais não impediram muitos outros jornalistas de achar que a fronteira entre a verdade e a sua manipulação inventiva era uma barreira fácil de ultrapassar com frequência.
Saí da faculdade, aliás, um pouco sofista, achando que se podia dizer, argumentar, inventar quase tudo sobre quase tudo. E pus-me a escrever ficção a sério. Resultaram cinco romances.
Hoje, contudo, neste mundo completamente mobilizado pela tecnologia do espetáculo, pela tecnologia da invenção, da representação sem que precise de existir o objeto representado, parece-me cada vez mais importante perceber onde está a verdade, o que é que a realidade confirma, com a sua olímpica indiferença ao que podemos dizer sobre ela.
Vou continuar a escrever ficção, vou continuar à procura de verdades íntimas e universais, de disparates e sentidos, mas queria só pedir, modestamente, aos que têm ou deveriam ter o ofício da verdade (jornalistas, políticos, biógrafos, historiadores, documentaristas) que se preocupem com ela. Até porque o que resta da história, da memória, é aquilo que contámos, que dissemos, e por muito que goste de ficção, preferia que não fosse tudo inventado.
There is no city that does not dream from its foundations. The lost lake crumbling in the hands of the brickmakers, the floor of the ravine where light lies broken with the memory of rivers. All the winters stored in that geologic garden. Dinosaurs sleep in the subway at Bloor and Shaw, a bed of bones under the rumbling track. The storm that lit the city with the voltage of spring, when we were eighteen on the clean earth. The ferry ride in the rain, wind wet with wedding music and everything that sings in the carbon of stone and bone like a page of love, wind-lost from a hand, unread.
Night garden
Your mouth, a hand against my mouth. Pressed to earth, we dream of ocean: heat-soaked, washed with exhaustion, our mariner's sleep haunted by smells of garden--fresh rosemary thirty miles off Spain. Long grasses sway the bottom of our boat. We follow a sequence of scents complex as music, navigate earth places, sea places, follow acoustics of mountains, warbler instinct in the dark-- Siberia, Africa, and back-- phosphor runways guiding us to shore, moonlight half eaten by the waves.
Across the lawn, a lit window floats. Welts of lupine. You remember an open window, Arabian music through wet beeches. We know we're moving at tremendous speed, that if it could be seen the stars would be a smear of velocity. But all is still, pinioned. In the night garden, light is a swallowed cry. Naked in the middle of the city the stars grow firm in our mouths.
Passei uns dias a ouvir Ella Fitzgerald a cantar ao vivo em Hollywood no Crescendo e Jacqueline Du Pré a tocar violoncelo nas suas gravações para a EMI. Foram duas das melhores compras deste princípio de ano.
Ella é Ella e ao vivo, cantando, rindo, swingando, falando com o público, scatando, esquecendo-se das letras, acedendo a pedidos, está no seu absoluto melhor, acompanhada por Lou Levy no piano, Herb Ellis na guitarra, Wilfred Middlebrooks no baixo e Gus Johnson na bateria. A caixa chama-se "Twelve Nights in Hollywood" e está a par do "Sinatra at the Sands" como uma das grandes gravações ao vivo do final de uma era dourada de um determinado tipo de canção, de uma determinada forma de cantar.
A caixa de 17 CDs da senhora Du Pré, que inclui todas as gravações que fez para a EMI custa aqui pouco menos de vinte e quatro euros e os portes de envio são gratuitos, um grande negócio. Do concerto de Elgar às suites de Bach, passando por Beethoven, Haydn, Brahms ou Falla, o repertório é vasto e o acompanhamento luxuoso. A seguir verei o "Hillary and Jackie", já agora.
A tudo isto se somaram os contos de Alice Munro em "Too Much Happiness". O conto é um género que ignoro com maior frequência do que devia. Quando bem escrito, quando genialmente escrito, como é o caso, tem uma dimensão de jóia, de economia narrativa, de prazer de linguagem que escapa muitas vezes aos romances.
Por falar em romances, li dois de seguida mais uma vez de uma mulher, Anne Michaels, uma canadiana que eu arrumaria na estante com Michael Ondaatje. Curioso como alguns dos meus escritores de culto são canadianos, se lhes juntar Douglas Coupland ou William Gibson, por exemplo. A escrita de Michaels radica na poesia e na história, em particular a terrível história do século XX. Diga-se que antes de escrever "Fugitive Pieces" e "The Winter Vault", os que li, foi sobretudo poetisa e deliciei-me também com o seu volume "Skin Divers".
Acho aliás que ela está melhor na poesia, que transparece na sua escrita de emoções, sempre telúrica, mas que muitas vezes parece não carregar a suficiente tensão para aguentar um romance, uma história. Isto reflecte-se aliás na adaptação cinematográfica de "Fugitive Pieces", nunca distribuída cá, que eu saiba. O mal pertence ao passado, à história, a dor é consequência do amor e vice-versa, o Homem vive da sua interacção com a Terra e a nossa capacidade para a poesia sustenta-nos. Se na escrita, Michaels consegue fazer estes elementos brilhar, em cinema é preciso um génio maior.
Bom.
Passados estes dias, mergulhei finalmente no "2666" do Bolaño, que já ia sendo tempo, mas ainda vou no princípio, isto é, na página 250.
A história começa com a frase "Viver com fantasmas exige solidão" que aparece no "Regresso a Barcelona" e já tinha confessado aqui ser roubada a um trailer. Não me recordava sinceramente a que trailer. Redescobri-o recentemente.
O que se passa é que andei a ler o "Fugitive Pieces" da Anne Michaels. Mais sobre isso noutra altura, mas vi de seguida o filme inspirado pelo livro. O filme não é mau, mas "amassa" o livro para lhe dar a coerência que se espera numa longa-metragem e num romance de tom poético e raiz histórica emocional é menos relevante. O filme é de um tal Jeremy Podeswa, realizador sobretudo de televisão (de episódios de algumas séries notáveis como Nip/Tuck, Six Feet Under, The Tudors, Rome, Carnivale).
E a frase lá está, no filme, embora nele, na sua história tenha um peso muito mais dramático que aquele que eu lhe atribuí, de índole mais pessoal e sentimental. O que é curioso é que não me lembro de a ler no livro. Mas também não vou procurar.