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luís soares

Blog do escritor Luís Soares

Miguel-Manso - Piquenos Óleos de Capri

para o Luis Manuel Gaspar

 

se é para ir cedo desta vida
então que primeiro se visite Capri
armado de tintas e intentos

 

as casas brancas arrumadas entre cactos
os caminhos amarelos 
empoeirados
onde nada nem ninguém
o azul do mar cosido a umas nuvens
a uns arbustos

 

tudo plasmou com o zelo diarista
do pintor

 

madeiras empacotadas despachadas de Nápoles
como promessa
como vinhetas onde a luz recresce 
lenço 
enrugado manchado de sangue tossido: clarão 
para futuros mostruários

 

eis Henrique Pousão morto aos vinte 
e cinco
vítima do trabalho da beleza e de problemas
na árvore respiratória

 

tornou a Portugal para morrer 
sem ter gozado o todo da pensão do Estado 
como aluno no estrangeiro
(classe: Pintura de Paisagem)

 

recebeu-o o pai 
e a Academia de que não teve tempo 
de escapar

 

e no comboio em que veio as paisagens 
que não pintou doeram-lhe tanto como as pintadas 
a todas carpiu gorou

 

no fim
entre as ruelas apertadas as barreiras 
pétreas 
os telhados rotos os tranquilos sobrados
de Capri

 

no meio das figurinhas maltrapilhas postas
na frescura dos muros sobre 
tufos de erva nova
das escadinhas subindo para enigmáticos
portões

 

ficou uma imagem só: a da ‘janela das persianas 
azuis’

 

onde uma fiada de roupa branca ainda hoje
enxuga ao Sol

 

Capri.jpg

Henrique Pousão, 'A Janela das Persianas Azuis', óleo sobre madeira, 1883.

"O Meu Contributo para o Estudo da Melancolia"

perguntou por onde vai

a narração do secretário da corte

no

 

caderno

de bolso das ideias chuvosas

de Lisboa

 

eu tinha vindo de onde

era o outro lado, do Verão

polifónico das palavras

metade de mim debulhava

a fruta doce dos capítulos

a outra metade

 

ramificava num jogo de memórias

num aturado tratado sobre a respiração

de quem espera no silêncio do mundo

 

continuou fora de mim o texto

caminho provisório círculo síntese imperfeita

de lugar

 

qual o quadro concreto desta tristeza?

 

a minha noção de melancolia é

uma notícia naufragada um verso detido

na alfândega

 

nevoeiro muro branco vento que reúne

a areia na véspera das palavras

 

marinheiro ao largo da derrota ou

outra coisa definitiva o rigor

 

metafísico de um cigarro

frente ao sentido vulnerável

dos dias

 

escrevo antes que escureça alguém

veio passar-se no silêncio europeu da praça

chapéu inclinado sobre a orelha esquerda

 

astrónomos olhavam o extracto do céu de Setembro

 

de Miguel-Manso

in "Contra a Manhã Burra", Mariposa Azual, 2009