Inevitável, sonhar contigo hoje...
- Inevitável, sonhar contigo hoje…Tão saborosas, as palavras, ou seria apenas a voz de Clara a envolver-me na sua estudada doçura, ainda mais ligeiramente abafada pelo telefone, pela hora tardia, o restolhar tão próximo dos seus lençóis, da almofada onde conta todas as manhãs os cabelos que perdeu durante a noite. Clara vive no pânico de ficar careca, de ser a cantora careca. Ela, a do cabelo lustroso, mesmo de madrugada, depois dos meus dedos no pescoço, mesmo depois de tudo.
- Inevitável, sonhar contigo hoje…
Repete-as, hipnotizante. Talvez, como é seu hábito, experimente apenas a textura do som na sua língua, nos seus lábios. E eu ouço-as e encosto mais o telemóvel ao ouvido, mexo-me irrequieto na cama, talvez incomodado pela sua ausência, que me vai custar quando tentar finalmente adormecer. Talvez por conhecer tão bem os seus hábitos, talvez por conseguir imaginar, tomando como semente a repetição daquelas quatro palavras, todos os seus pequenos movimentos, trejeitos, pestanas.
- Porquê? – Pergunto quase a medo.
- Vais ser a última voz que vou ouvir antes de adormecer...
- Pensei que fosse algum motivo mais especial. – Desejei, mais do que pensei, sendo sempre um desejo algo em que investimos mais do nosso sangue do que um breve pensamento de sete palavras. Um desejo pode ser a vida toda. Ela responde com uma gargalhadinha preguiçosa, quase operática, no seu perfeito tom e colocação. Deixa-nos depois em silêncio. Sinto a melancolia do tanto que já foi dito entre nós, de aparentemente pouco restar para dizer. Procuro, mas não encontro. – Dorme bem, então.
- Obrigado. Beijinho. – E desliga sem esperar resposta.