"Josef mal tocara na sua água com gás e tentava catalogar aquela energia. Um desfiladeiro intransponível de nervos e medo? Um principiante sem tiques de estrela ou um puto com a mania? Um miúdo sem hipóteses? Josef em frente à porta do edifício do jornal noutro Outono, máquina na mão, a querer um estágio. Fernando e Miranda a entrar na universidade, longe, longe de Josef, de Hannah. Anos e anos a passar. Meio século de Josef Leitz. Felix poderia fechar o círculo, ser um círculo perfeito?"
(...)
"A hora é a do crepúsculo, há um azul muito azul no céu, um azul de que Miranda se lembra com a nitidez imprecisa de uma cor, sem contornos, sem foco, apenas a cor. Turquesa? Ametista? Que sabe ela das cores? Está com Fernando de costas, em silhueta, de mão dada. Olham as luzes, olham um círculo perfeito, a roda gigante. Onde foi?"
(...)
"Ao lado de André, nos degraus que rodeiam a fonte e a estátua de Eros, sentou-se um rapaz alourado com uma penugem como barba, vestido de preto e cinzento, uma fita no cabelo. Espreita-lhe a t-shirt que diz "Stay hungry! Stay foolish!". Fica a pensar nas palavras e como desenham um círculo perfeito, uma espiral, um remoinho, esfomeado, insensato. Terá de ser sensato para se conseguir alimentar, não? Olha-o insistentemente, espreita o caderno onde o rapaz começou a desenhar uma fachada do outro lado da rua, mas é ignorado. Não vale a pena meter conversa."
"Antes de conhecer Elisa, eu era um descrente das relações, um libertino, perseguindo mulheres à bolina, conforme o vento da minha vontade. No dia em que pela primeira vez a vi, aliás, ia levado pelo meu olfacto atrás de um perfume. Não era um perfume qualquer, era o mesmo de uma rapariga loura, alta, quase tão alta como eu, por quem eu tivera um fraquinho imenso (perdoem me o oximoro) uns meses antes. Tão imenso que destruíra uma precária paixão assolapada de três semanas com a rapariga anterior (uma baixinha e viçosa). E o perfume ia com ela onde ela ia. No quarto onde dormia, então, era uma nuvem intoxicante, um território inóspito de sensualidade, convidando-me à colonização.
Perseguia eu o perfume dessa antiga conquista que se fora no fim do Inverno quando, por aquela porta entreaberta, sentada ao piano, estava Elisa. Logo se me entupiu o nariz. Até hoje é para mim um mistério: consigo marcar com exactidão esses dois segundos antes do início da Sarabanda como o momento em que me apaixonei. É estranho, convenhamos, nem a cara lhe tinha visto.
Foi como uma invasão, como se Atila o Huno, Alexandre o Grande, o próprio Saladino tivessem sitiado o meu coração, preparados para o acrescentarem ao seu império, uma jóia na coroa, para sempre. Em 4 de Julho de 1187, Saladino arrasou o Reino de Jerusalém e passou a fio de espada todos os seus habitantes. Em 4 de Setembro de 1975, Elisa da Ponte arrasou o Reino de Thomas Wartet e para sempre lhe trespassou o coração.
Quando Elisa começou a tocar, um ruído cessou. O mundo moveu se mais devagar, os pássaros bateram as asas com lassidão e as ondas enrolaram se com mais cuidado, medo de partir se em vez de desfazer se em espuma. O fumo conteve se nos escapes, os carros sustendo a respiração, e todos os apressados da terra pisaram mais devagar e com mais cuidado. Assim são as ilusões do amor, mesmo quando ele próprio não é ilusão."