Caché.
Michael Haneke é um realizador que gosta de mexer com a cabeça dos seus espectadores. Gosta de entrar lá dentro, passear-se, fazer umas acrobacias, esfurancar, fazer ferida e esfregar sal no fim. Por vezes nem é isso, gosta só de incomodar, gerar uma espécie de voyeurismo desconfortável um pouco parecido com o suor que se cola na pele em dias de grande calor.
Vi poucos filmes dele, o "Funny Games" original, "A Pianista" e agora "Caché", mas todos me deixaram um pouco desorientado entre estas sensações.
Em "Caché", Daniel Auteil e Juliette Binoche vivem numa Paris de mito, entre a cultura e os amigos, a educação e o dinheiro, livros e televisão. Nem sequer é a Paris dos turistas, é uma espécie de sombra que Paris gosta de deixar sobre o resto das cidades da Europa, como se todos os seus habitantes fossem aspirantes a Bernard Pivots e Catherine Deneuves, ou se calhar Sartres e Beauvoirs, perdoem-me os plurais.
Haneke descontrói essa cidade, perfurando a própria natureza da imagem para vasculhar nos complexos dos franceses e da sociedade contemporânea, levando-nos com a sua câmara ao campo senhorial e às Habitações de Renda Controlada, com o mesmo desconforto intrigante. Mais ainda, move-se com destreza entre a intimidade do casal e o espaço público, criando um espelho distorcido que nos leva como num jogo de ténis a seguir a bola de um lado para o outro. De quem é aquele olhar? Dele, só dele.
É claro que ver este filme me levou de volta às minhas considerações e divagações sobre a mitologia das cidades - precisamente na maneira como são feitas do pormenor ínfimo e do plano geral - e, logo de seguida, num encaixe perfeito, a um diálogo do livro que ando a ler, "Giovanni's Room" do James Baldwin:
'You are an American?' he asked at last.
'Yes,' I said. 'From New York'.
'Ah! I'm told that New York is very beautiful. Is it more beautiful than Paris?'
'Oh, no,' I said, 'no city is more beautiful than Paris -'
O diálogo continua, brilhante, mas para o resto, têm de ir ler. Está na página 29 da minha edição, que é a da colecção Great Loves da Penguin, quem tem além do mais magníficas capas - se clicarem nesse link há uma breve entrevista com o respectivo designer.
Uma última nota. Vi o "Caché" em blu-ray e perdoem-me todos os blockbusters digitais e os seus especialíssimos efeitos, mas a nitidez de Paris, clara a cortar à faca, na imagem de Haneke deixou-me mais uma vez enamorado da alta definição.