Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

luís soares

Blog do escritor Luís Soares

Família.

Ia eu passando pela rua, conta o meu avô, pela rua ali em Pinelo e vi uma menina muito bonita à janela. Acentuava o muito, reforçava a beleza da que viria a ser a minha avó, muuuuuito bonita. A minha avó sorri e encolhe os ombros. A sua irmã, tia de minha mãe ri-se ronceira como se cansada da história e depois pica o meu avô, mas foi a mim que me viste e não à minha irmã. E o meu avô não desmente. Só que quando bati à porta, persiste ele, quem abriu foi a tua irmã. E foi com ela que acabei por casar.
Não bateu à porta para perguntar pela beleza da mulher da janela, veja-se. Bateu à porta porque era caixeiro viajante e lhe ocorreu como boa desculpa para entrar naquela casa, tentar vender atoalhados, roupa de cama, tecidos para cortinados que trazia em amostras numa mala grande. Era por ser caixeiro viajante, aliás, que se encontrava em Pinelo, por aquela hora de almoço, de mala pela mão, depois de uma extenuante manhã de loja em loja, a pé, à boleia, nas carreiras irregulares dos autocarros, tentando convencer quem precisava de ser convencido da qualidade do produto que trazia.
O meu avô conhecia a pé, de burro, camião, carro, o que calhasse, o lado de cá e de lá da fronteira norte do país, mas nunca lhe ocorrera emigrar. Em boa hora, se o tivesse feito, não teria passado naquela rua, visto aquela menina à janela, a que viria a ser minha avó, conta ele uma vez mais.

 

Estamos todos no quarto do lar onde as enfermeiras, sargentos daqueles corredores, as funcionárias de função incerta, soldados que mantêm os velhotes na ordem, autorizaram que subisse a cadeira de rodas de minha avó para celebrar os seus oitenta e nove anos. Coro por dentro, no peito, na ideia e nas pernas que me fraquejam ao pensar que me sinto velho com ainda não quarenta e o meu avô, de fato e gravata, muito composto, lenço no bolso, da mesma cor da gravata, anima toda a gente com as suas histórias e os seus gestos e os seus noventa e quatro anos de energia.
Toda a gente sou eu, a minha mãe, sua filha, o irmão dela, amuado como é costume, junto a uma janela fumando uma cigarrilha, a tia de ambos que insistiu em estar presentes e o terceiro irmão, ele próprio já velho e cansado, afundado na poltrona do canto. Sou o mais novo, com trinta e oito anos. Dentro de dois, a minha mãe terá setenta. É mais nova cinco anos que o irmão. A tia que tantos anos depois ainda insiste que era ela quem estava à janela vai fazer oitenta e cinco e o seu irmão viúvo, triste na poltrona a recordar a mulher, é o mais novo dos três, uns escassos oitenta e dois.
Tantos anos juntos provocam-me uma tontura, mas talvez seja o ar morno e abafado do quarto, talvez do pequeno-almoço distante e do almoço que não chega. Talvez seja o coro de vozes que irrompe por entre as recordações, desmentindo-se, reforçando, comentando, o meu avô, a sua cunhada, a minha mãe, até o velhote no sofá do canto, mandando as suas bocas certeiras dos lábios finos, mãos manchadas da idade rasgando o ar. Apenas o meu tio e os seus cigarros e a minha avó na sua cadeira de rodas se mantêm calados.
Que vale mais a pena decifrar? Os silêncios ou as vozes?
Sei o resto da história, de como a minha bisavó ofereceu almoço ao meu avô. Rosa, quem está aí? Vende o quê? E vais ficar aí a conversar à porta? Isso não é de menina bem educada, manda entrar. Imagino-a solene como as bisavós são solenes, sentada à cabeceira da mesa, uma irmã de cada lado, o meu avô de frente, tímido de se ver assim arrastado para aquela casa sem pai. O meu bisavô andava no mar. Mas também divertido e de conversa esperta para as meninas e a sua solitária mãe.
Lá fora as árvores valsam no vento, quase lhes conto os compassos e os gestos e o fumo da cigarrilha do meu tio perde-se no mesmo gesto contra o céu azul muito azul e as nuvens de algodão limpo. Talvez as observe, talvez esteja apenas farto de tanta velhice, daquelas histórias que o perseguem desde a infância. Perco-me eu também, nesta teia. Chego-me a ele.
– Quantas vezes já ouviu esta história?
Olha-me sobressaltado, não me esperava cúmplice. Sorri.
– Muitas. Desde sempre. E nem tenho a certeza se é verdadeira. – Procura onde apagar o cigarro. – Mas não interessa muito, é uma história bonita. O meu pai sempre teve jeito para histórias.
Apaga o cigarro no parapeito do lado de fora da janela e deixa-o cair para um canteiro abaixo, junto à parede. Vira-se para mim como se me quisesse ver bem, como se não tivesse a certeza de ser eu ainda, tantos anos depois daquelas tardes em que me levou a comer tostas de queijo numa esplanada para o lado do rio com uma mulher com quem não era casado, apesar de ser casado.
– Como estás tu, Samuel?
– Bem, está tudo bem. Nenhuma novidade. A vida de professor é de uma regularidade aborrecida. Nenhum aluno talentoso para a animar.
– Nenhuma namorada?
Sorrio, penso em Miranda, mas não respondo. É a voz inesperada da minha avó que nos distrai.
– Sempre foste uma invejosa, Antónia, foi para mim que ele olhou. Era a mim que ele queria. – E fica um silêncio de expectativa. Mas por estes dias, a minha avó é assim, apenas uma frase de vez em quando, com uma voz de força e um olhar intenso que não diz nada. Fala apenas quando entende necessário, cada vez menos coisas, à medida que o tempo passa.
– Ai minha Rosinha, minha flor, tão linda. – Diz o meu avô e passa-lhe a mão pela cara. Troca um olhar com a minha tia Antónia que morde o lábio para não responder à irmã. Histórias, verdades, mentiras, traições, amores, a acumulação de coisas de que as famílias são feitas, o cansaço do tempo. A minha mãe ajeita a manta nas pernas da sua mãe.

 

Desculpo-me. Que tenho de ir à casa-de-banho, que volto já, e saio para a penumbra do corredor, onde o ar é marginalmente mais fresco, a luz mais contida. Nas paredes estão quadros sem qualidade, provavelmente pintados pelos inquilinos do lar. Vem ainda a voz do meu avô, contando outra história sobre o nome da minha avó, nome de flor, ou talvez cantando uma canção, não chego a perceber. Suspiro de um alívio temporário.
Sou neste momento, o ponto final de uma destas histórias, filho único dos meus pais, solteiro. O pânico súbito desta solidão aflige-me por um instante, passo ante passo a caminho da casa de banho, roçando os nós dos dedos pela parede rugosa, pelo varão de madeira que serve de apoio aos de pernas frágeis, quase todos ali, na verdade.
Tiro o telemóvel do bolso e ligo a Miranda.

2 comentários

Comentar post