"I like to complicate things"
Ken Burns: On Story from Redglass Pictures on Vimeo.
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Ken Burns: On Story from Redglass Pictures on Vimeo.
Como uma imagem que ganhasse súbito foco, olho-o de frente uma primeira vez. Estranho em primeiro lugar o cabelo. Pensei que já ninguém usava o cabelo assim. Bom, talvez alguns surfistas. Ainda algumas crianças. São caracóis louros que, sem se perderem em cascata, parecem suficientes para o fazer passar por anjo no Carnaval. Um deles cai mesmo no meio da testa.
Outro cliente o chama e levanta-se como uma mola. É alto e magro. Art era mais ou menos assim, sem os caracóis caricatos, tinha cabelo liso. Art era talvez um pouco mais alto. Mas as semelhanças são evidentes para o meu estado de espírito sonolento e melancólico.
Volta sem eu dar por ele e de novo se senta. A pele não me permite declarar se ronda os vinte e poucos ou muitos. Podiam ser vinte e poucos ou mesmo dezoito, dezanove, mas a barba já foi feita muitas vezes. Se calhar teve barba muito cedo, só isso. E nunca se gostou de ver com ela. Simpatizo com isso. Os olhos são castanhos.
in Regresso a Barcelona (Na fotografia, o actor Niels Schneider).
Sentindo o Outono a chegar, o fotógrafo teve de admitir que até gostava do rapaz. Despertava-lhe uma curiosidade pouco habitual, pelo menos. Esfregou os braços num arrepio, procurou em vão o casaco que deixara no jipe, mas não lhe apeteceu ir buscá-lo. Um fim de tarde, um instante específico, logo na sexta-feira, último fim-de-semana de Setembro. Abanou a cabeça, tossicou a suster uma gargalhada no silêncio.
Os modelos profissionais eram-lhe de um modo geral indiferentes, nem o nome perguntava. Os mais destemidos, as mais atrevidas apresentavam-se, insinuavam-se mas esquecia-os em cinco minutos. Sorria cortês sem convicção, dirigia-os, fotografava-os e depois ignorava-os. Não imaginava que tivessem alguma coisa dentro para terem escolhido aquela profissão.
Agora era provável que tivesse de entender-se com outros sentimentos. Um rapaz a começar, com a mesma garra que ele, Josef, em tempos tivera. Suspirou, a hipótese era relevante e um flutuar da pulsação, talvez mesmo originado no peito, confirmou-o em forma de susto.
No céu, a prata, o cinzento, a baunilha, as grandes nuvens carregadas de chuva por entre os pinheiros, a vir do mar. Algures um sol mortiço a desistir do dia. A única cor viva do fim de tarde era a incandescência na ponta do cigarro. A madeira dos troncos e do alpendre, pesada, brilhante de humidade, o branco da cadeira de plástico, as garrafas de cerveja vazias em cima da mesa. A máquina digital abandonada como um maço de tabaco, o maço de tabaco.
Talvez seja da nudez do lugar, os pinheiros, a areia, a pouca mobília. Talvez seja das conversas durante a tarde, ele que nunca foi muito conversador. Talvez tudo contribua para lhe trazer à memória o jovem Josef, de máquina na mão preparado para enfrentar o mundo com insolência. Talvez essa tontura de tempo passado.
in "Virá a Morte e Terá Os Teus Olhos" (inédito)
Sábado foi Dia Mundial da Música, não sei de quem é a decisão da escolha do dia, mas foi oportunidade para fazer ainda mais em volta do tema. Aqui fizemos imensa coisa. Ficámos a saber da paixão do Sassetti pelos Beatles, além de recordar alguns dos editores convidados do ano que passou, sugestões de agenda, de tudo um pouco.
O que motiva este post é que para mim, hoje também é Dia da Música, todos os dias são. Passei os olhos pela minha estante de CDs. São milhares. Assim, de repente e só porque os olhos pararam lá: tenho 14 discos de Bill Evans, 9 do Sassetti, 10 de Radiohead, 8 de Laurie Anderson, 20 de R.E.M., 10 de Tom Waits, 5 de John Coltrane, 8 de Eels. Nem vou falar da música dita erudita. Ao contrário dos melómanos mais dedicados, não tenho mais de duas ou três versões de coisas de que gosto mesmo, Bach (vários membros da família), Mozart, Haydn, Verdi, Berlioz, Britten, Simeon Ten Holt... Bom, vou parar.
Tenho alguns tiques de colecionador desde os anos 90, mas nada de particularmente grave. Gosto mesmo de música. Lembro-me de comprar os meus primeiros bootlegs no mercado de Camden. Lembro-me de gravar músicas da rádio em cassete e de fazer playlists em CD. Tenho conta no Music Box, Soundcloud e no Last FM e só o mês passado gastei uns setenta euros no iTunes. Sim, também já "saquei" música da Internet, mas acho que a esta altura é claro que nunca nenhum músico terá ido à falência por minha causa. Da colecção de vinis, o mais precioso nem é meu, é da minha mãe e foi o meu pai que lho ofereceu no dia em que casaram, "Bridge Over Troubled Water" de Simon & Garfunkel.
Profissionalmente nunca toquei nada, nunca cantei, nem sei. Já passei música aqui e ali e já escrevi muito sobre música, neste blog mas também antes disso e mais ficção do que qualquer outra coisa. No meu dia a dia profissional, a música está, felizmente, presente em grandes doses.
No tal meu livro que está por publicar, também há música, claro. Fica um exemplo.
Setembro de 1979. Passaram quase sete anos desde que voltou.
Um fim de tarde no parque, um concerto na relva.
No coreto toca um trio: piano, contrabaixo, bateria. Vão a meio de um Darn That Dream distraído. Josef pousou a máquina nas pernas, deixou de fotografar as pessoas à sua volta. Já gastou dois rolos na curiosidade dos que o rodeiam. Toda a gente conversa, bebe, come, ri, fuma materiais diversos, namora, aprecia a suavidade do tempo. No entanto, todos ouvem a música também, tem a certeza. A música está em todos os gestos, todos os sorrisos, a música é a brisa que vibra em tudo.
Vem lá uma década e o medo dela, uma nuvem de desilusão e sonhos desfeitos, mas ali sobrevive um refúgio, uma paz momentânea, um espírito que teima em não morrer. Tem a certeza de ter captado o instante em negativo, talvez no azul do céu, talvez nos verdes da erva, dos arbustos, das árvores, nas crianças saltitando por aqui e por ali, uma ou outra nua até, sem medo dos cães e dos puritanos, os seus pais bebendo vinho branco, adolescentes distraídos com beijos, com livros, universitários que também estudam ou fingem que estudam, mesmo os abandonados ao excesso, dias de pedra, dias de ressaca, fome insaciável de sexo nos olhares de perdigueiro. Todos ouvem.
Josef em casa na sua cidade, uma relva na sua cidade.
Vem alguém por entre as pessoas pedindo para passar com uma voz decidida mas infantil, passos laboriosos incomodando uma toalha de piquenique e um cão, os pés descalços e as sandálias de um rapaz de barba e cabelo comprido, outro de madeixas descoloradas e calças brilhantes coladas às pernas magras. Josef olha para trás. É uma rapariga franzina carregando uma caixa de violoncelo do seu tamanho. Pousa-a no chão, na relva, suspira de cansaço. Deixa-a tombar com cuidado, assegurando-se de que não vai cair, rebolar pela suave inclinação da colina. Só depois se senta ao seu lado, uma mão pousada sobre o instrumento, uma saia larga e florida a rodeá-la.
in "Virá a Morte e Terá Os Teus Olhos" (inédito)
Já agora fica aqui o tal "Darn That Dream" num dueto entre Bill Evans e Jim Hall, do "Undercurrent" (sim, tenho).
Do diário de Joana, escrito anteontem.
Eu não quero ficar em casa, passar as férias a comer gelados só porque mos oferecem em vez de ternura, não quero uma semana com o meu pai, outra com a minha mãe, não quero nada. Não quero a vida deles. Vem aí o verão, não protestes, faltam só quatro meses. Quero o aconchego do teu corpo. Não quero crescer, não quero ter medo. A nossa vida tem de ser bem mais do que conforto. Estou farta de estar confortável, estou farta da minha mãe e do meu pai, a acharem que podem corrigir alguma coisa, resolver alguma coisa. As coisas estão feitas, tudo está perdido, não quero trepar pelas paredes e dizer-lhes “não faz mal”. Já fez todo o mal. Quero mergulhar de frente no teu corpo debruçado sobre a mota. Gosto do brilho dos teus olhos quando riscas o ar, gosto do calor do teu sopro quando me beijas o ouvido, gosto do cheiro do teu pescoço quando não há mais nada a dizer. Tens um pescoço tão bonito, gosto tanto do sítio onde começam os teus cabelinhos, quase nada, quase só uma penugem. Gosto da maneira como ficas corado quando o vento te bate na cara. Nada a dizer, só sim, quero o que tu quiseres. Devia dizer-to mais vezes, mas leva-me. Não quero ter quarenta anos e ser como eles, quero aqui e agora e és tu quem me leva e é no teu corpo que eu não vou ter medo. Vamos já. Vai ser um dia glorioso! Tenho medo da solidão no teu olhar, de não ser eu quem te leva para onde queres ir. Para onde queres ir? Para onde vamos? Longe daqui, por favor. Já não sei o que escrevo. Já não sei o que pensar. Gosto de ir levada pelo teu vento, sinto as faíscas a zumbir nos meus ouvidos, agarro-me a ti com mais força e cortamos a estrada, as tuas mãos finas, os nós dos dedos brancos, sobre o guiador, puxas-me pelo pescoço e roubas-me um beijo quase com violência, quase com amor. Levanto a cabeça e o vento frio bate-me com mais força no pescoço, as estrelas passam muito devagar lá em cima, por entre as nuvens como lagoas, mares, oceanos, riem-se da nossa pressa, irrequietos, a correr desta maneira, a acelerar contra um muro que é o teu olhar. De vez em quando surpreende-me a firmeza do meu amor.
O vento viaja connosco, quero-te no fundo de mim, tenho-te só a ti, pouso a cabeça nas tuas costas, ouço o teu coração a bater, apressado, irrequieto, incerto, duvidas de tudo, vês só o brilho à tua frente, na estrada, uma curva larga a descer. A lua escapa-se por entre duas nuvens barrocas e brilha num halo de humidade, já vejo menos estrelas, as árvores fogem irregularmente do meu olhar, lembro-me das gémeas que me invejam, incapazes de compreender este desespero de procurar a tua boca para que não fuja, para que não digas nada, se calhar nunca o tiveram, só o ruído da língua a tocar no céu e depois nos dentes e abres os lábios num sorriso e eu já estou a abraçar-te, quero decifrar o medo no teu olhar. Às vezes é tão bom não saber o que vai acontecer amanhã. Como te quero. Hoje fugimos, fugimos. Antes que o inferno se abra.João parece ouvir, parece sentir, lê os pensamentos beijados nas costas, segredados com as mãos, quer entender tudo, aquele é o momento, os gestos, os enigmas, os beijos, a voracidade que os subjuga, em cada gesto, em cada expirar involuntário de prazer. Nada o oprime, por um instante, sente-se amado, possuído, devorado, olha no fundo dos olhos grandes dela como naquela primeira vez, junto à água asséptica da piscina, quer senti-la de uma vez a penetrar a alma dele, todos os pequenos abismos.
Lembro-me de mergulharmos juntos em túneis, no cardume do trânsito.
Começam a pôr-se aqueles dias de olhar. Imagino Lisboa levantando o rio como se uma saia sua fosse e recostando-se nas colinas para que nos entreguemos à sua contemplação. Mas eu e tu na Senhora do Monte, entregues um ao outro, sós com outros namorados, ignoramos essa primavera da cidade ou fazêmo-la em nós.
Abril de 2011
Estou à espera de saber o que acontecerá ao meu mais recente original, mas como não consigo parar, comecei já a escrever qualquer coisa nova. Na verdade foi já no dia 19 de Janeiro que anotei as primeiras palavras e em Maio criei um documento no Word para lhes dar forma. Tenho ideias sobre a história, personagens principais, onde quero que comece, onde quero que acabe, mas ainda pouco mais, é demasiado cedo. Lugares, sons, imagens formam-se ainda soltos na minha imaginação e vão demorar a tomar forma mais concreta. É o primeiro passo.
Seja como for, esse primeiro esboço de prólogo passa-se em 1997, durante o primeiro Festival Sudoeste, enquanto os Blur tocavam esta música.
As fotografias são de Santiago Mostyn (as duas primeiras) e Stefani Pappas (a terceira). O texto é um rascunho meu.
Fecha os olhos e lembra-se bem de correr pelos bosques, quantos anos tinha? sem saber onde ia pousar os pés, evitando por pouco a sombra das árvores, arbustos a arranhar-lhe as pernas, correndo, a t-shirt encharcada sobre a pele, de baixo para cima, dos calções para o pescoço, ainda o cheiro a arder-lhe nos olhos, depois de nadar de noite na piscina. Os primos desistiam de esperar por ele e quando voltava, nadava sozinho, a água e o cloro a picar-lhe os arranhões. Os braços afastando o escuro, desengonçados. O medo no peito, o fôlego a fugir-lhe, o peito a arder. Não posso mais, não posso mais. Pára junto a uma árvore. Quanto correu? Pára debruçado sobre o chão, as mãos pousadas nos joelhos. Deixa-se cair e fica a respirar ainda com dificuldade. Deixa-se cair no chão e por entre o vento e as árvores, lá em cima, longe há estrelas e talvez nuvens, sim, já nuvens. Que estranha a sombra mais clara das nuvens no escuro da noite. O que é que eu faço?