Parte central de "Virá a morte e terá os teus olhos" é um fim de semana numa cabana num pinhal perto de uma praia. A certa altura, Josef...
"Desce do alpendre para a areia e olha a cabana no meio das árvores, como se os pinheiros tivessem aberto apenas o espaço necessário para algumas das suas tábuas darem forma a um cubo de madeira com alpendre e telhado inclinado. Um paralelepípedo, sejamos precisos. Tem um certo encanto, perto da praia, longe do parque de campismo mais próximo, a sul, de uma ou outra casa a norte, a que se seguem com certeza empreendimentos turísticos, a ameaça de hordas de calções a fazer desabar falésias e dunas. Sim, podia viver ali uns meses, experimentar-se como uma espécie de monge marítimo em contemplação.
Levanta a máquina. A casa, as árvores. Recorda a sombra larga de um castanheiro com um baloiço de corda e tábua pendurado de um ramo na esquina de uma outra casa, num outro tempo. Alguém que não ele pisara um dia descalço um ouriço. Fernando? Miranda? Por vezes tem dificuldades em distingui-los na memória. Assavam castanhas no lume. Fernando trepava ao telhado. Miranda cantarolava. Havia uma macieira brava junto à parede poente. Estas memórias de uma infância que não consegue precisar ocupam-lhe o tempo de meio cigarro, máquina na mão, não mais. Foi realmente pai durante esses anos?
Aponta mas não dispara. Que horas serão?
Tira o casaco do jipe, veste-o e volta a sentar-se.
Chegaram há pouco, há tempo.
Não passaram dois dias desde que descobriu Felix.
Sexta-feira. Desta vez é diferente."
Mas como Pedro, o dono do lugar lhe explicou...
"Não é uma cabana, Josef. Cabana é pindérico, não acredito em cabanas. É uma casa. De madeira sim, apenas uma sala, um quarto, mas está longe de ser uma cabana."
Seja como for, embora a ideia do cenário me tenha ocorrido no parque de campismo da Praia da Galé na Costa Vicentina e embora depois tenha-me assustado um lugar do género no "Anticristo" do Lars Von Trier, descobri entretanto um Tumblr com o sugestivo nome Cabin Porn. A fotografia abaixo não é junto a uma praia, é na Noruega, foi tirada por Tom Knudsen mas é um bom exemplo.
Virá a morte e terá os teus olhos de Luís Soares está apenas disponível em formato de livro eletrónico:
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Estamos na Semana Santa e, no calendário católico, celebra-se a Paixão do Senhor, o relato dos seus últimos dias, da sua morte e ressureição. Não sou uma pessoa católica, nem sequer religiosa mas será que escrevi uma Paixão profana ou mesmo herética?
Para além do sofrimento físico, da morte, dos momentos de meditação, dos três dias em que se concentra parte da narrativa, de um eventual Gólgota, talvez até um bom ladrão e um mau ladrão, para além, dizia eu, destes fatores circunstanciais, é improvável que haja qualquer semelhança entre o que escrevi e a Paixão de Cristo. Há até indícios que me condenariam ao fogo dos infernos: guerra e violência, famílias destruídas, amores contranatura. Não sei.
A redenção ou a compaixão parecem-me pouco possíves nesta história de um mundo destinado a um apocalipse onde nem pela arte nem pelo amor as minhas personagens se poderão salvar. É o século XX em todo o seu esplendor.
Falo da arte porque a Paixão sempre me interessou muito mais como tema para a criação artística do que propriamente no sentido estrito religioso. Sou eu a falar ou o fotógrafo Leitz? Da turba polifónica a Bach, a Arvo Part, são muitas as paixões que me fascinam.
Houve um momento em que o livro esteve para se chamar "A Paixão de Josef Leitz". Paixão como sofrimento, paixão como pulsão incontrolável de corpo e alma, misto de agonia e prazer. Não sei é se seria paixão por alguém ou pela própria fotografia. Talvez se descubra no texto.
Há aliás toda uma parte do livro que leva o nome de "A Paixão" e um diálogo que tem lugar em Cuba e reza assim:
– Estás-me a dizer que não sabes o que é estar apaixonado?
– Estamos a falar da Paixão de Cristo?
– Não desvies o assunto, tonto.
– Eu gosto da Paixão como teatro, como poesia, como música Tenho... alguma dificuldade com o sentimento.
– Música, música, música... Gostas das Paixões de Bach?
– Música clássica é para burgueses.
– Barroca.
– Ou isso. Burguesa na mesma.
– Então mas de que gostas tu na Paixão?
– Gosto da história. É uma história romântica, um herói que se sacrifica por um ideal.
– Dito assim o Cristo parece quase um guerrilheiro. Um Che.
– E então? Estamos no sítio certo para falar dele. E eu conheci alguns guerrilheiros assim, em tempos.
– Mas tudo bem, aceito. A Paixão de Cristo, a Paixão de Che. A Paixão do Nazareno. A Paixão do Argentino. Sofrendo por ideais, morrendo por ideais. Verdadeiros heróis românticos. Então és romântico? Se és romântico, acreditas em paixões.
Abaixo ficam duas fotografias. Uma tirada por mim, de um Gólgota parodiado ou imaginado num céu de crepúsculo, outra de Ryan McGinley, um jovem Cristo de nome Jake, braços abertos em queda, sobre tons de outono. O outono que Josef Leitz sente chegar no princípio da história.
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Josef Leitz, um fotógrafo com uma longa e ilustre carreira convida um jovem modelo (Felix) para um fim de semana de trabalho na praia. Entre ambos desenvolve-se uma inesperada tensão, entre a atração e a repulsa. Na segunda-feira seguinte, Josef Leitz estará morto, brutalmente assassinado.
Miranda Leitz, filha do fotógrafo, apaixona-se por Ruben, o polícia que lhe traz a notícia da sua morte. Com ele tenta investigar o assassinato, mas mais que isso, descobrir quem foi realmente Josef, o seu pai. É um processo doloroso em que as peças do puzzle nem sempre encaixam, conduzindo-a a um confronto emocional com o passado, o irmão Fernando e a mãe Hannah.
Josef Leitz nasceu em plena Segunda Guerra Mundial e atravessou a loucura, a paixão, o horror da segunda metade do século XX, sempre de máquina na mão, tornando-se famoso pelas suas imagens, obcecado pela sua arte. Terá sido apenas mais um produto desse século amoral? Poderia alguma vez ter dado atenção à sua família, aos filhos?
E quem é este Felix, o último rapaz que Josef fotografa, nesses dias junto ao mar? É apenas mais um adolescente ansioso por fugir do seu subúrbio colado à pobreza de um bairro de lata que os aviões sobrevoam, preso entre a brutalidade dos amigos e desejos inconfessáveis, a fixação por André, em todos os sentidos o seu modelo. Seria a objetiva de Josef o caminho para se libertar? Qual é afinal o papel dele no crime?
“Virá a morte e terá os teus olhos” é um livro sobre famílias, as verdadeiras, de sangue, e as que os laços do afeto criam, as que nos salvam e as que nos matam, mas é também um livro sobre o presente e o futuro, o valor das imagens e da memória, o sexo e a violência, as fronteiras em que decidimos a nossa identidade.
O título é roubado a um poema de Cesare Pavese, o vídeo acima é da Cia. de Foto.
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"Dois dias antes de morrer, Josef pensou “desta vez é diferente”.
Sentindo o Outono a chegar, o fotógrafo teve de admitir que até gostava do rapaz. Despertava-lhe uma curiosidade pouco habitual, pelo menos. Esfregou os braços num arrepio, procurou em vão o casaco que deixara no jipe, mas não lhe apeteceu ir buscá-lo. Um fim de tarde, um instante específico, logo na sexta-feira, último fim-de-semana de Setembro. Abanou a cabeça, tossicou a suster uma gargalhada no silêncio.
Os modelos profissionais eram-lhe de um modo geral indiferentes, nem o nome perguntava. Os mais destemidos, as mais atrevidas apresentavam-se, insinuavam-se mas esquecia-os em cinco minutos. Sorria cortês sem convicção, dirigia-os, fotografava-os e depois ignorava-os. Não imaginava que tivessem alguma coisa dentro para terem escolhido aquela profissão.
Agora era provável que tivesse de entender-se com outros sentimentos. Um rapaz a começar, com a mesma garra que ele, Josef, em tempos tivera. Suspirou, a hipótese era relevante e um flutuar da pulsação, talvez mesmo originado no peito, confirmou-o em forma de susto.
No céu, a prata, o cinzento, a baunilha, as grandes nuvens carregadas de chuva por entre os pinheiros, a vir do mar. Algures um sol mortiço a desistir do dia. A única cor viva do fim de tarde era a incandescência na ponta do cigarro. A madeira dos troncos e do alpendre, pesada, brilhante de humidade, o branco da cadeira de plástico, as garrafas de cerveja vazias em cima da mesa. A máquina digital abandonada como um maço de tabaco, o maço de tabaco.
Talvez seja da nudez do lugar, os pinheiros, a areia, a pouca mobília. Talvez seja das conversas durante a tarde, ele que nunca foi muito conversador. Talvez tudo contribua para lhe trazer à memória o jovem Josef, de máquina na mão preparado para enfrentar o mundo com insolência. Talvez essa tontura de tempo passado."
Virá a morte e terá os teus olhos, Luís Soares
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"Josef é um fotógrafo conhecido. O seu nome desperta admiração em galerias de arte, redações, agências, editoras. Está neste momento a decorrer uma mostra retrospectiva da sua obra, no Pompidou, em Paris. Poucos o conhecem em pessoa, contudo. Em toda a vida deu apenas duas entrevistas, nunca esteve presente numa inauguração ou lançamento, nunca apareceu. Muitas das fotografias que tirou foram publicadas, reproduzidas, mostradas nos cantos mais variados do mundo, mas quando o convidaram para uma visita, recusou sempre. Nunca lhe interessou a hipótese da fama. É um fotógrafo que não se deixa fotografar. Conhecem-lhe a cara apenas aqueles que trabalham consigo, como aquele rapazola.
Meio século de carreira. Não é o que diz no catálogo da exposição? Josef e as suas imagens são meio século. Tudo lhe parece já cansaço apenas. Há não mais que um ano, era megalómano na encenação dos seus modelos. Cada sessão obrigava a um esforço de realizador de cinema: equipas de dezenas de pessoas, luz, maquilhagem, roupa, técnicos de todas as tecnologias. No fim nada ficava, nada descobria. Pedia cada vez mais dinheiro, fazia exigências de estrela (uma roulotte só para si, duas garrafas de champanhe, fruta fresca, dez toalhas brancas, uma cama para descansar). A tudo lhe disseram sim.
Quando Hannah se foi, exilou-se desse mundo, esgravatou a pose. Se pensar nisso, toda a vida uma sucessão de exílios. Perdeu o interesse por imagens de pessoas bonitas, roupa cara, lugares conhecidos, atitude, afectação. Começou a fotografar modelos fora do contexto, raparigas e rapazes. Procura-lhes as borbulhas, as cicatrizes, as tatuagens e os brincos, a roupa suja do dia-a-dia, a nudez inevitável. Fotografa-os na rua, em casa, na casa deles, na casa de amigos, com amigos, apenas os amigos, como se fossem todos pessoas normais. Passeando e conversando, divertindo-se à noite. Entra nas suas salas, janta com eles, espera tornar-se transparente, para que a sua objectiva veja para além da superfície opaca das relações. Tenta fazer-se invisível, com as suas máquinas, o seu olhar. Procura uma familiaridade que não existe, que só pode fabricar, um intimismo artificial, uma investigação dos nós e dos laços.
Será ainda um fotógrafo de valor? Chega-lhe haver quem ache isso? Mesmo essas fotografias recentes, mesmo as desfocadas, as desenquadradas, as séries intermináveis a cobrir paredes, minimalistas na diferença de um negativo para o próximo, mesmo essas encontram comprador. Porquê? Vale a pena perguntar? É isso que interessa? Que o comprem?"
Virá a morte e terá os teus olhos, Luís Soares
(na fotografia, um autorretrato do fotógrafo inglês David Bailey, 2009)
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