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luís soares

Blog do escritor Luís Soares

Às vezes lembro-me

"Aqui fica o tema principal do filme ALICE de Marco Martins, 7 anos depois, gravado no piano mais equilibrado que existe actualmente em Portugal. Tal como escrevi em 1994, "Lisboa, a cidade de luz, como a conhecemos, assim como a imensidão dos seus habitantes, ganham aqui uma nova dimensão, trágica e sombria - figuras humanas caminham, obstinadas, em aparentes gestos de rotina, indiferentes a tudo o que as rodeia. Assim é Lisboa neste filme, cenário por onde Mário se movimenta à procura de Alice, misteriosamente desaparecida. Já ninguém acredita que é possível mas ele não desiste. Também a solidão é assim retratada: numa grande cidade, aqueles que nos estão mais próximos são, por vezes, os últimos a acreditar. (...) A música de ALICE representa um passo importante na forma como agora olho para a composição musical. Aos meus olhos, mudou também a cidade onde nasci."

Música Calada.

Lembrei-me de repente que no Regresso a Barcelona existe um Cafe Mompou que tem esse nome em honra ao compositor catalão Frederico Mompou, compositor da série Musica Callada de que o Bernardo Sassetti toca o nº 1 no Nocturno, primeiro numa versão em trio e depois a solo.

No livro, o Café Mompou cruza-se de alguma forma com o Café Muller da Pina Bausch e com a Traviata. Invenções. Comprei depois um CD só com a música de Mompou, tocada por Javier Perianes, mas foi por causa do Sassetti que o café ficou com esse nome.

Aliás quando sugeri uma banda sonora para Em Silêncio, Amor, já lá estavam o Mompou e o Sassetti.

Aqui abaixo, uma curta dirigida por Mike Lubik inspirada por essa mesma composição. Toca Jenny Lin. Ainda por cima começa num cemitério.

 

Virá a morte...

 

"Josef mal tocara na sua água com gás e tentava catalogar aquela energia. Um desfiladeiro intransponível de nervos e medo? Um principiante sem tiques de estrela ou um puto com a mania? Um miúdo sem hipóteses? Josef em frente à porta do edifício do jornal noutro Outono, máquina na mão, a querer um estágio. Fernando e Miranda a entrar na universidade, longe, longe de Josef, de Hannah. Anos e anos a passar. Meio século de Josef Leitz. Felix poderia fechar o círculo, ser um círculo perfeito?"

(...)

"A hora é a do crepúsculo, há um azul muito azul no céu, um azul de que Miranda se lembra com a nitidez imprecisa de uma cor, sem contornos, sem foco, apenas a cor. Turquesa? Ametista? Que sabe ela das cores? Está com Fernando de costas, em silhueta, de mão dada. Olham as luzes, olham um círculo perfeito, a roda gigante. Onde foi?"

(...)

"Ao lado de André, nos degraus que rodeiam a fonte e a estátua de Eros, sentou-se um rapaz alourado com uma penugem como barba, vestido de preto e cinzento, uma fita no cabelo. Espreita-lhe a t-shirt que diz "Stay hungry! Stay foolish!". Fica a pensar nas palavras e como desenham um círculo perfeito, uma espiral, um remoinho, esfomeado, insensato. Terá de ser sensato para se conseguir alimentar, não? Olha-o insistentemente, espreita o caderno onde o rapaz começou a desenhar uma fachada do outro lado da rua, mas é ignorado. Não vale a pena meter conversa."

in Virá a morte e terá os teus olhos


Virá a morte e terá os teus olhos de Luís Soares está apenas disponível em formato de livro eletrónico:

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Em Silêncio...

 

"Antes de conhecer Elisa, eu era um descrente das relações, um libertino, perseguindo mulheres à bolina, conforme o vento da minha vontade. No dia em que pela primeira vez a vi, aliás, ia levado pelo meu olfacto atrás de um perfume. Não era um perfume qualquer, era o mesmo de uma rapariga loura, alta, quase tão alta como eu, por quem eu tivera um fraquinho imenso (perdoem me o oximoro) uns meses antes. Tão imenso que destruíra uma precária paixão assolapada de três semanas com a rapariga anterior (uma baixinha e viçosa). E o perfume ia com ela onde ela ia. No quarto onde dormia, então, era uma nuvem intoxicante, um território inóspito de sensualidade, convidando-me à colonização.

Perseguia eu o perfume dessa antiga conquista que se fora no fim do Inverno quando, por aquela porta entreaberta, sentada ao piano, estava Elisa. Logo se me entupiu o nariz. Até hoje é para mim um mistério: consigo marcar com exactidão esses dois segundos antes do início da Sarabanda como o momento em que me apaixonei. É estranho, convenhamos, nem a cara lhe tinha visto.

Foi como uma invasão, como se Atila o Huno, Alexandre o Grande, o próprio Saladino tivessem sitiado o meu coração, preparados para o acrescentarem ao seu império, uma jóia na coroa, para sempre. Em 4 de Julho de 1187, Saladino arrasou o Reino de Jerusalém e passou a fio de espada todos os seus habitantes. Em 4 de Setembro de 1975, Elisa da Ponte arrasou o Reino de Thomas Wartet e para sempre lhe trespassou o coração.

Quando Elisa começou a tocar, um ruído cessou. O mundo moveu se mais devagar, os pássaros bateram as asas com lassidão e as ondas enrolaram se com mais cuidado, medo de partir se em vez de desfazer se em espuma. O fumo conteve se nos escapes, os carros sustendo a respiração, e todos os apressados da terra pisaram mais devagar e com mais cuidado. Assim são as ilusões do amor, mesmo quando ele próprio não é ilusão."

in Em Silêncio, Amor

Luto.

Disse a uma amiga há tempos que se algum dia ganhasse o Euromilhões, contratava o Bernardo Sassetti para fazer a banda sonora da minha vida. Era só uma brincadeira para exemplificar a minha admiração por ele, profunda, sincera. Preferia que a notícia da sua morte fosse um erro, preferia que este ano ou para o ano houvesse disco ou discos novos, mais uma ou duas bandas sonoras, concertos, aventuras. Preferia ter música nova dele para me acompanhar em passeio pela cidade, enquanto escrevo, enquanto acordo e adormeço, enquanto conduzo e penso. Preferia a inspiração de o poder ouvir. Fica o que fez. Fica o que ouvi e vou voltar a ouvir vezes sem conta. Mas estou inconsolável.