"Antes de conhecer Elisa, eu era um descrente das relações, um libertino, perseguindo mulheres à bolina, conforme o vento da minha vontade. No dia em que pela primeira vez a vi, aliás, ia levado pelo meu olfacto atrás de um perfume. Não era um perfume qualquer, era o mesmo de uma rapariga loura, alta, quase tão alta como eu, por quem eu tivera um fraquinho imenso (perdoem me o oximoro) uns meses antes. Tão imenso que destruíra uma precária paixão assolapada de três semanas com a rapariga anterior (uma baixinha e viçosa). E o perfume ia com ela onde ela ia. No quarto onde dormia, então, era uma nuvem intoxicante, um território inóspito de sensualidade, convidando-me à colonização.
Perseguia eu o perfume dessa antiga conquista que se fora no fim do Inverno quando, por aquela porta entreaberta, sentada ao piano, estava Elisa. Logo se me entupiu o nariz. Até hoje é para mim um mistério: consigo marcar com exactidão esses dois segundos antes do início da Sarabanda como o momento em que me apaixonei. É estranho, convenhamos, nem a cara lhe tinha visto.
Foi como uma invasão, como se Atila o Huno, Alexandre o Grande, o próprio Saladino tivessem sitiado o meu coração, preparados para o acrescentarem ao seu império, uma jóia na coroa, para sempre. Em 4 de Julho de 1187, Saladino arrasou o Reino de Jerusalém e passou a fio de espada todos os seus habitantes. Em 4 de Setembro de 1975, Elisa da Ponte arrasou o Reino de Thomas Wartet e para sempre lhe trespassou o coração.
Quando Elisa começou a tocar, um ruído cessou. O mundo moveu se mais devagar, os pássaros bateram as asas com lassidão e as ondas enrolaram se com mais cuidado, medo de partir se em vez de desfazer se em espuma. O fumo conteve se nos escapes, os carros sustendo a respiração, e todos os apressados da terra pisaram mais devagar e com mais cuidado. Assim são as ilusões do amor, mesmo quando ele próprio não é ilusão."
O vídeo abaixo tem a ver com o "Em Silêncio, Amor" por causa desta história dentro da história, que o livro contém. A casa das três bruxas de Truro, é a casa à beira da linha férrea, do Hopper, mesmo que a dele fique noutro lugar.
Como um bom aluno, fiz o mesmo que Alice. Esperei obediente no passeio pela mudança do semáforo. Olhei na mesma para um lado e para o outro e atravessei com o mesmo passo decidido, talvez forçando um pouco o apoio da bengala. Quando cheguei ao outro lado, doía me o pulso do peso que pusera sobre a mão direita.
Descobri as lágrimas apenas quando a primeira caiu sobre essa mão em que me apoiava. Cheguei me à montra. Contemplei o homem artificial que precisava de um abraço. Naquele dia a sua situação era ainda mais humilhante que o costume, nu, todo ele plástico branco e formas vagas, esperando uma muda de roupa que não vinha.
No entanto, conseguia manter se de pé sem a ajuda de uma bengala, não chorava sem dar pelas lágrimas, não havia na sua cabeça a Sarabanda da Partita nº 2 em Dó Menor, não tinha medo do trânsito, para sempre ali, preso ao seu lugar.
Fiquei talvez uns cinco minutos. Dei uns passos de lado, contornei a esquina, olhei para o manequim de outro ângulo. Ignorou me, como era da sua natureza.
Apesar do ruído do trânsito, o piano não saía da minha cabeça e apenas me distraí dele quando, pelo canto do olho, lá ao fundo, na outra esquina, descobri o contorno magro do rapaz vermelho.
Consta que hoje é dia do livro. Para mim é todos os dias, neste momento vai sendo dia da Patti Smith e do Chuck Palahniuk e do Don DeLillo. Mas seja como for é sempre bom dia para aproveitar e dizer que os meus são fáceis de encontrar AQUI. Sim, AQUI. Nas livrarias é mais complicado, mas de vez em quando lá estão eles nas estantes, espremidos a seguir ao Rodrigues dos Santos e ao Saramago, antes do Gonçalo M. Tavares. Mas hoje AQUI ainda por cima não se paga portes de envio, já viram que coisa maravilhosa? E ainda por cima pus aqui ao lado a fotografia de uma gaja boa a ler um livro. Pronto, não é só uma gaja boa, é a Marylin. E não é só um livro, é o "Ulysses" do Joyce. E já repararam como ela está quase no fim? Ah mulher! Se não estivesses morta, dizia-te para ires comprar os meus livros AQUI.
Tudo indica que hoje, este blog faz dois anos. E o primeiro post foi este pormenor de um quadro do Rothko que, não sei porquê, me lembra o Verão que chega daqui a uns dias. Foi aliás este quadro que me inspirou dois parágrafos algures no "Em Silêncio, Amor":
É um apartamento minúsculo, em cada divisão só cabe uma coisa. Ali, quem entra, vê a cama a encher tudo menos o roupeiro, que enche o resto, mas fica escondido pela porta que abre, com o seu vidro fosco de ondas perfeitas. Andamos de lado entre a cama e o roupeiro, para a janela de água furtada, quase uma seteira. E vê o farol. E vê o Rothko, por cima da cabeceira da cama. “Red, Orange, Tan and Purple”. Parece uma praia, procurem. Deitados, tínhamos vista para uma praia. Pendurámos o quadro ao contrário, assim, ao vê-lo de baixo para cima, deitados, víamo-lo bem na mesma. Ninguém reparava, claro, só mais um Rothko. Ou um deserto, pode ser um deserto, se não imaginarem o mar.
O lugar quase não existe, tanta é a luz a desfazer-lhe os contornos, a memória. A do Sol e os seus reflexos, na areia, no mar, no sorriso de Elisa que se escapa à sombra da aba. Quando ela baixa a cabeça, a cara toda na sombra, quando levanta, a voz e o sorriso.
Pode ver-se no site da Relâmpago, a série de fotografias que Luís Miguel Nava tirou nas suas viagens em Marrocos, na Mauritânia ou no México. A que está abaixo é de Marrocos e lembra-me algumas coisas que escrevi no capítulo "O Diário Wartet" do "Em Silêncio, Amor".
Um dos miúdos apontou-me a aldeia ao longe. A última nogueira é já um cadáver de ramos e sombras. Quando cheguei era ainda majestosa, uma sombra como uma casa. Alguns zimbros sobrevivem nas encostas viradas a sul. Amanhã o qibli vai cobrir-nos de areia do deserto. Talvez não amanhã, mas mais um ou dois dias, certamente. Hoje é lua nova, o céu permanece absurdamente limpo, de um negro profundo, com mais estrelas que nunca. Lembra-me as minhas noites a voar. Espero ter um sono igual ao céu.
Tenho muito poucas dúvidas de que "Alice" de Marco Martins é o meu filme português favorito dos últimos anos. A circularidade pouco convencional da construção narrativa; a fotografia do Carlos Lopes, naquela cidade depurada, naquela Lisboa reconhecida e irreconhecível, toda sentimento; o elenco notavelmente equilibrado, genial no caso do Nuno Lopes; a realização, sem excesso, sem falta; a banda sonora, claro, a banda sonora do Sassetti.
Se tiver de ser realmente honesto, é neste filme que nasce a primeira semente do "Em Silêncio, Amor", pelo nome da desaparecida, pela perda como tom dominante, pelo som do piano atravessando as imagens, pela cidade (quase) sem nome.
A revista New Scientist perguntou a seis autores sobre o futuro da ficção científica, alguns mais ligados ao género, outros menos. O resultado pode ser lido aqui. São eles Margaret Atwood, Stephen Baxter, William Gibson, Ursula K Le Guin, Kim Stanley Robinson e Nick Sagan.
A questão de base é interessante, nascendo de um sentimento dominante de irrealidade que a mobilização da sociedade pela técnica e a "crise permanente" trazem às sociedades contemporâneas. Esta omnipresença da tecnologia e a questão do "futuro" são traços tradicionais na ficção científica que estão a passar para a chamada literatura tradicional, nomeadamente em alguns dos meus autores favoritos como Michael Cunningham e David Mitchell.
Passe a imodéstia na comparação, também no que escrevo os temas da ficção científica parecem transparecer cada vez mais. Todo um capítulo de "Em Silêncio, Amor" passava-se já no futuro.
Gostei muito. O romance está bem construído. As personagens são profundas, reais e surpreendentes ao mesmo tempo. Recorre a diversos modelos de escrita ( a narrativa, o diário, o conto ). Recomendei-o aos meus alunos na rubrica "Contrato de leitura". Gostaram de analisar alguns excertos. Não é uma escrita muito ambiciosa mas tem qualidade e reflecte muito bem os nossos dias, apesar d espaço e do tempo serem irreais.