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luís soares

Blog do escritor Luís Soares

Nel frattempo, nella camera de Violetta Valéry.

Recitativo:

È strano! è strano! in core
Scolpiti ho quegli accenti!
Sarìa per me sventura un serio amore?
Che risolvi, o turbata anima mia?
Null'uomo ancora t'accendeva O gioia
Ch'io non conobbi, essere amata amando!
E sdegnarla poss'io
Per l'aride follie del viver mio?

 

Aria:

Ah, fors'è lui che l'anima
Solinga ne' tumulti
Godea sovente pingere
De' suoi colori occulti!
Lui che modesto e vigile
All'egre soglie ascese,
E nuova febbre accese,
Destandomi all'amor.
A quell'amor ch'è palpito
Dell'universo intero,
Misterioso, altero,
Croce e delizia al cor.

 

(Resta concentrata un istante, poi dice)

 

Recitativo II:

Follie! follie delirio vano è questo!
Povera donna, sola
Abbandonata in questo
Popoloso deserto
Che appellano Parigi,
Che spero or più?
Che far degg'io!
Gioire,
Di voluttà nei vortici perire.


Finale:

Sempre libera degg'io
Folleggiar di gioia in gioia,
Vo' che scorra il viver mio
Pei sentieri del piacer,
Nasca il giorno, o il giorno muoia,
Sempre lieta ne' ritrovi
A diletti sempre nuovi
Dee volare il mio pensier.

Personagem

Como uma imagem que ganhasse súbito foco, olho-o de frente uma primeira vez. Estranho em primeiro lugar o cabelo. Pensei que já ninguém usava o cabelo assim. Bom, talvez alguns surfistas. Ainda algumas crianças. São caracóis louros que, sem se perderem em cascata, parecem suficientes para o fazer passar por anjo no Carnaval. Um deles cai mesmo no meio da testa.

Outro cliente o chama e levanta-se como uma mola. É alto e magro. Art era mais ou menos assim, sem os caracóis caricatos, tinha cabelo liso. Art era talvez um pouco mais alto. Mas as semelhanças são evidentes para o meu estado de espírito sonolento e melancólico.

Volta sem eu dar por ele e de novo se senta. A pele não me permite declarar se ronda os vinte e poucos ou muitos. Podiam ser vinte e poucos ou mesmo dezoito, dezanove, mas a barba já foi feita muitas vezes. Se calhar teve barba muito cedo, só isso. E nunca se gostou de ver com ela. Simpatizo com isso. Os olhos são castanhos.

 

in Regresso a Barcelona (Na fotografia, o actor Niels Schneider).

Dia Mundial do Livro

 

Consta que hoje é dia do livro. Para mim é todos os dias, neste momento vai sendo dia da Patti Smith e do Chuck Palahniuk e do Don DeLillo. Mas seja como for é sempre bom dia para aproveitar e dizer que os meus são fáceis de encontrar AQUI. Sim, AQUI. Nas livrarias é mais complicado, mas de vez em quando lá estão eles nas estantes, espremidos a seguir ao Rodrigues dos Santos e ao Saramago, antes do Gonçalo M. Tavares. Mas hoje AQUI ainda por cima não se paga portes de envio, já viram que coisa maravilhosa? E ainda por cima pus aqui ao lado a fotografia de uma gaja boa a ler um livro. Pronto, não é só uma gaja boa, é a Marylin. E não é só um livro, é o "Ulysses" do Joyce. E já repararam como ela está quase no fim? Ah mulher! Se não estivesses morta, dizia-te para ires comprar os meus livros AQUI.

 

Dia Mundial da Música.

É apenas a segunda vez na vida que vou ouvir Clara ao vivo. O meu fulgurante namoro com ela, que haveria de ser a grande diva Barahona Athayde, terminou umas duas semanas depois de a ver em palco pela primeira vez.

Era um recital de alunos no salão nobre do Conservatório, já na altura a cair de velho. Eu e Art éramos os mais nervosos, mais que ela, mais que os seus colegas irrequietos, correndo entre famílias orgulhosas e amigos trocistas, ansiosos pela sua vez no palco. Remexíamo-nos nas cadeiras de pau da plateia, depois de um almoço regado a sangria e encerrado com cafés. Fazíamos piadas parvas e ríamos baixinho como crianças com medo de ser apanhadas no mundo dos adultos. Art estava cómico só pela roupa, camisa aos quadrados apertada até ao colarinho, coisa que eu nunca tinha visto.

– Estás um palhaço.

– Vê lá se não te vou aos cornos.

Clara tinha já um estatuto próprio, era convidada de honra do recital, uma jovem estudante do eminente professor Jaume Hereu-Risques do Conservatório do Liceu na ilustre Barcelona. Nesse dia cantou duas árias italianas de Händel. Eu, que arrumara o canto lírico no baú das memórias de infância que não tencionava abrir, arrepiei-me, emocionei-me, orgulhei-me, mas no fim sentia apenas uma agitação, um medo sem nome que me sacudia o corpo. Era como se tivesse amado uma deusa disfarçada de forma humana nos últimos meses e recebesse agora um aviso do Olimpo de que a ia perder. De novo os deuses a iam resgatar aos meus frágeis braços humanos. Virei-me para Art, tentando confortar-me com o meu amigo, mas por baixo de um cabelo que lhe escorria para os olhos à Kurt Cobain, tinha a cara lavada em lágrimas e o corpo tenso de transe.

Ele sabia o mesmo que eu, pensava eu. Como poderíamos nós, meros mortais alguma vez aspirar a possuí-la? Clara era uma extraterrestre nas nossas vidas. Dignara-nos com a honra de uma breve visita, mas em breve partiria numa nave prateada em direcção às estrelas. Seria ela própria um ponto no firmamento. Olharíamos para cima nas noites quentes a apontá-la numa constelação. O Verão preparava-se para acabar e eu respirava com dificuldade.

Passada uma meia hora, eu e Art disfarçávamos bem essas emoções intensas e confusas. Eu beijava-a, Art abraçava-nos, já três botões da camisa desapertados, descíamos a Rua dos Caetanos agarrados, a caminho de ir ter com Edgardo que nos esperava numa tasca adiante a comer amendoins e a beber ginjinha enquanto via futebol na televisão. A minha ansiedade acalmava um pouco, mas uma alcateia de lobos parecia rondar-me o coração onde antes só houvera uma certeza sem contenda.

Em Outubro, Clara planeava voltar a Barcelona, desta vez quase por um ano e já me convidara para a acompanhar. Sem grande convicção, parecia-me, enquanto pisava os paralelepípedos de basalto, olhava a roupa estendida das varandas, a cor nas sardinheiras, a sujidade nas fachadas, os carros mal estacionados, o grande braço de Art que atravessava os ombros de Clara para tocar no meu pescoço, para acariciar o meu pescoço?

Sentia-me uma vez mais mero espectador de uma vida que por acaso devia ser a minha. Havia uma diferença, contudo: deixara de ser simultaneamente protagonista. Tentava sacudir esse pensamento para longe, mas lá à frente ele escondia-se nas esquinas para se rir escarninho e de novo se insinuar na minha distracção.

– Que tens?
– Que tenho? Como?
– Pareces aluado.
Que tenho?

– É a tua voz. Ainda a ouço, ainda me arrepia.

– É verdade, estava todo arrepiadinho, ele. Uma verdadeira galinha com limão.

– Cala-te chorão.

– Galinha à maricas, com o limão enfiado no...

– Bebé chorão.

– Vê lá se não te arranco os olhos.

– Meninos, meninos, tanta violência.

– É o que a tua música faz, pior que trash metal.

E ríamo-nos como se tudo fosse igual.

 

 

in "Regresso a Barcelona"

O Encontro com Art

Conheci Art na noite anterior a conhecer Clara, junto ao Beco do Forno, quem desce a Calçada de Salvador Correia de Sá, para os lados de Santa Catarina. Eram umas três da manhã e vinha indisposto de um jantar de amigos perdidos e recuperados no fazer e desfazer de relações mal acabadas. Já nessa altura, ainda por sair da adolescência, tinha dessas coisas. Alguns eram colegas do tempo de escola, outros eram daqueles amigos que fazemos nos primeiros três meses de faculdade e logo nos arrependemos. Sentamo-nos ao lado de alguém numa aula de praxe e arranjamos um amigo de óculos. Nem sei como se misturaram. Um jantar onde nunca deveria ter ido. E os copos no Bairro. Alguém a vomitar e eu a ir embora sem me despedir.

O fresco da noite e o ar húmido tinham-me despertado do torpor da sangria e o som dos meus passos nos paralelepípedos de basalto animava-me um pouco. Quase chocámos, no encontro dos nossos caminhos. Era muito alto ele, olhos abertos, cabelo louro comprido, magro. Parecia quase estrangeiro, quase lhe falei em inglês. Bêbedo, olhei para cima e ri-me da figura. Imóvel nem sequer era muito desengonçado, mas um poste, ali no meio da rua. Não levou a mal o encontrão, a troça. Cumprimentámo-nos, dissemos nomes, estendemos mãos, pedimos desculpa, mas ninguém tinha pisado ninguém, nenhuma mossa, desviámos olhos.

– Eu não estou perdido! – Disse ele sem que lhe perguntasse nada.

– Não disse que estavas.

– Sei sempre para onde é o rio.

Era do norte.
– Para baixo.

– Isso, para baixo.

– Mas estavas com ar perdido. – Dei um passo para me ir embora.

– Estou com fome. – Hesitante em segurar-me pelo braço.

– Isso resolve-se.
Olhou-me de novo.
– Quanto medes?
– De altura?

– Havia de ser de quê?

– Não sei, para aí um metro e setenta e qualquer coisa.

– Gostava de ser mais baixo como tu, para caber melhor nas camas.

Ri-me. Estava também bêbedo. Arrastava as palavras.

– Isso é conversa que se tenha no meio da rua? Estás a engatar-me?

Rimo-nos os dois.

– E também podia ter assim olhos azuis como tu.

Os dele eram castanhos.

– Eu acho que tu me queres engatar.

Rimo-nos mais. Deu-me uma pancada nas costas.

– Não, estava só a pensar roubar-te os olhos.

Falou com ar sério, um pouco psicopata. O cabelo louro caía-lhe para a testa, para o pescoço. Os braços finos escondiam uma força inesperada. Não soube o que responder.

– Mas continuava com o problema da altura.

Abanei a cabeça e olhei para a placa com o nome da rua. Quem seria Salvador Correia de Sá? Ele continuou quando me começava a apetecer que passasse um táxi. Mas isso só lá mais em baixo.

– Amanhã dou uma festa. Tenho umas amigas boas, queres ir? – Soltou uma gargalhada sem me deixar responder. A gargalhada de Art. – Amanhã que é já hoje. Além de que não estava a falar disso, tenho fome a sério mesmo.

– Isso resolve-se, já te disse.

Como começa assim sem mais uma conversa?

– Força, mostra-me lá onde se come a esta hora. Ainda não conheço isto bem.

Tic tac.
– Tu és de onde?

Art era de Espinho. Fora ao Porto umas poucas de vezes em criança mas pouco mais. Nem sequer tinha gostado muito. Fascinava-o realmente era esta cidade e o rio disfarçado de mar de que troçava com afecto. Eu que já nessa altura conhecia muitas cidades com rio, senti ternura por essa dedicação. Tinha vindo estudar para médico mas passava os dias a beber e fazer amigos, disse com nova gargalhada branca de dentes.

– E descobri que sou poeta.

– Quase todos nesta cidade.

– Olha que não...

– Olha que sim. Até... deixa ver... os taxistas.

– Os taxistas escrevem poesia?

– Os taxistas são os favoritos das Tágides!

Quem são as Tágides, perguntou ele.

Foi realmente assim? Não me recordo com precisão. Os nossos passos tinham virado para os lados de São Bento, conduzidos pelos estômagos que roncavam sonoros de fome. Teria eu chegado a jantar? Tanta fome deixava-me na dúvida. Estaria tudo a acontecer? Aquele restaurante atulhado de gente sem interesse, o vómito, a rua vazia. Um rapaz alto parado no meio do cruzamento. Art assegurou-me mais uma vez que estava também esfomeado.

– Mas afinal que estavas ali a fazer?

Encolheu os ombros.

– Indeciso e com fome.
– Não percebi.

– Nunca te acontece, em Lisboa? Quereres ir para todo o lado ao mesmo tempo?

Era doido, desde esse primeiro momento, achei que Art era doido.

– Sinceramente, não.

 

in "Regresso a Barcelona"

 

Rossio, madrugada.

Eu, Art, Edgardo, Aquiles. Os quatro inseparáveis, os quatro mosqueteiros, os quatro da vida airada. Cinco horas da noite, da manhã, segunda-feira. Reparem, diz Art, reparem como a cidade está deserta. Estamos no Rossio, ninguém. Nem um carro. Luzes eléctricas só para nós, como se fosse um palco. Edgardo ri sem motivo, de tudo e de nada, pálpebras de brilho baço, olhos semicerrados. Aquiles bebe as palavras de Art e segura-me pela cintura. Segura-me, aperta-me.

Que calor, diz Art para ninguém. E tira a sua t-shirt. Uma das t-shirts muito velhas, com buracos de traça e a desfazer-se em fios em baixo, junto à cintura, onde lhe vejo o elástico das cuecas acima dos calções de camuflado. Que calor, diz ele. E é verdade, quase uns trinta graus e é aquela hora. Lisboa. Estou farta de Lisboa, abafada, sufocada. Olho em volta e as colinas desabam sobre a minha liberdade. Uma, duas, três...

– Alguém sabe o nome das colinas de Lisboa?

– Todas as sete?

– As Amoreiras são uma colina? Alcântara não tem uma colina?

– Isso é uma invenção para copiar Roma.

– Ouviste, Edgardo, Roma.

Edgardo ri.

– Castelo, São Vicente, onde fica a Igreja do verdadeiro padroeiro da cidade, Santana, do respectivo Campo, Graça ou Santo André, Chagas, onde fica o Carmo, Santa Catarina, do lado do rio e São Roque, onde fica o Bairro Alto.

Aquiles aponta-as todas com o braço direito só, sem nunca me largar, mesmo as que não se vêem daqui. A sua pele é tão quente, a sua respiração queima quando me deixa um beijo no pescoço.

– Estás a gozar. Tu sabes isso?

– Sim.
– Tu sabes tudo?

Art é magro mas não demasiado, conto-lhe clavículas, costelas, mamilos, abdominais, umbigo, aqueles pelinhos que descem do umbigo. Que calor no ar parado. Aquiles abre os braços como a pedir desculpa de saber tanto.

Solto-me. Não num repelão, não sem elegância. Aproveito e solto-me numa pirueta. Tenho um vestido às flores. Quase transparente, de tão leve. Não tenho soutien, que me apertava. Largo os chinelos. Corro poucos metros e galgo a pedra. A água está surpreendentemente fresca e encharca-me a bainha do vestido, trepa por ele acima. Contorno a parte central da fonte. Coloco-a entre mim e eles. Não os vejo. A praça é só minha. Avanço pelas luzes no fundo, uma ribalta só minha. Paro junto a um tritão de pedra, lavo a mão na água que jorra em repuxo. Salpica-me, encharca-me. O tecido cola-se-me à pele. Desço e fico com a cabeça apenas de fora, o meu cabelo espalhado pela superfície.

Art e Edgardo saltam para dentro de água rindo. Edgardo está entretanto nu e grita a plenos pulmões “La dolce vita! La dolce vita!”. Art inicia uma batalha a chapinhar com ele. Estamos na praia, temos dez anos. Estamos no Rossio, temos dezoito anos. Não há vida senão aquela vida, não pode haver. Se mergulhar deixo de ouvir, apenas aqueles sons da água. Nem cantar me apetece. Sinto esse susto, nem cantar me apetece. Se nem isso me apetecer, que mais me resta?

Rodeio a fonte pelo outro lado. Aquiles sentou-se na beira e passeia apenas a mão pela superfície agitada. Parece meditar. Sento-me a seu lado, eu do lado de dentro, ele de fora. Os seus olhos dardejam para os meus mamilos duros, o meu umbigo, a minha cintura, os pelos púbicos que se notam mesmo com as cuecas. Encho a concha das minhas mãos de água e despejo-a pela cabeça dele. Baptizado, beija-me. Beijo-o, agora que a madrugada nos lembra que existe com uma ligeira brisa e me arrepia a pele molhada. Abraça-me de novo. Ali, um de cada lado em silêncio e água, entrego-me, a cabeça no seu ombro. Fecho os olhos.

Um carro da polícia ronda-nos, vindo da Rua da Betesga. Saímos a correr pela Rua dos Sapateiros. Edgardo trazendo na mão a trouxa da roupa, rindo, ainda, nu, saltando para as cavalitas das costas largas de Art que o segura, braços compridos e fortes, pelas pernas. Edgardo não é muito grande, não é muito pesado. Correm assim, como dois miúdos. Eu e Aquiles de mão dada. Só paramos no Largo das Belas Artes.

 

in "Regresso a Barcelona"

Sobre Barcelona.

No "Regresso a Barcelona" existe um livro dentro do livro, o guia da cidade que Aquiles está encarregue de escrever. Já no "Em Silêncio, Amor", tinha esboçado uma história dentro da história, "As Três Bruxas de Truro". Aqui, contudo, o guia fica-se em fragmentos. Coligi aqui abaixo, aquilo que poderiam ser notas e parágrafos dispersos rascunhados por Aquiles nos seus blocos e cadernos.

 

Inevitável sonhar contigo hoje.
Barcelona amanhece ventosa e tudo nela parece por isso mais nítido. O vento lança em fuga o pó e o lixo disperso que máquinas de diversos tamanhos tentam sugar obsessivamente dia e noite. Motoretas ruidosas que me acordam, pequenos tractores, grandes camiões a horas inconvenientes. Por muito que façam, não dão à cidade a nitidez com que um pouco de vento a varre.
Não me lembro de estar em Barcelona em silêncio, seja qual for a hora. Há sempre um eco distante que percute nas paredes e soçobra nas varandas. É contudo provavelmente verdade de todas as grandes cidades que nunca dormem. Barcelona talvez...
Não me lembro de haver senão tristeza subterrânea na minha vida. Um rio de tristeza, um rio de lágrimas ensurdecedor. Não, um mar. A tristeza vai aquecendo na superfície e começa a evaporar quase sem dares por ela. De repente é uma nuvem negra imensa, chuvas, ventos ciclónicos e tomba sobre ti no teu pequeno barco. Tu perguntas: isto não era só um oceano tropical e a tristeza uma corrente profunda? Acabas a ir pelos ares.
Com todo este ruído, como conseguir sequer conversar?
As Ramblas vibram já de passarada barulhenta e turistas pasmados tagarelando em frente a homens estátua, à espera que lhes roubem a carteira ou tirem uma foto. Há carros, lambretas, motas a sério, todos com buzina, um brado sem tino, um ocasional polícia. Louve-se os homens estátua, parecem ser os únicos que não fazem barulho. Americanos, italianos, holandeses, franceses, espanhóis e portugueses, claro. Há portugueses em todo o lado. Além de grupos acidentais de sul-americanos. Esses talvez sejam imigrantes recém-chegados. Passa-lhes o ímpeto turístico quando tiverem de penar à procura de sustento na cidade dos prodígios. Poucos japoneses, anoto.
Sinto-me cercado. Precisava de ser um homem-bomba para libertar algum espaço. São milhares, gordos de calções, crianças com trela, mulheres de chapéu, bêbedos com camisolas de futebol de todos os clubes do mundo que param em frente aos quiosques para comprar mais uma. Já aqui tinha estado num domingo? Há índios a tocar Beatles em flauta de pã ligada a amplificadores de má qualidade. E pequenos geradores na berma a somar-lhes barulho. Grupos de três ou quatro jovens que dançam acrobaticamente ao som de hip hop vomitado de ghettoblasters enormes.
As Ramblas são um rio lamacento de gente sem destino, sem direcção, tantos os que sobem como os que descem, derivam para as ruas laterais, voltam à grande corrente, enfrentam os escolhos. Pelo meio, aqueles que têm realmente alguma coisa para fazer tentam ser peixes, descobrir atalhos na contra corrente, escorregar entre os diálogos eternamente repetidos em todas as línguas. “Vamos ali?”; “Espera, o (inserir nome) ficou para trás”; “Aquela loja tem um ar giro”; “Que máximo, aquele!”.
Viro à esquerda no Carrer de Bonsuccés apesar de estar a poucos metros do fim da Rambla. Procuro as ruas mais estreitas, a sombra, os ecos mais distantes, uma ou outra loja de música talvez. Em frente a um pequeno largo (não mais que quatro árvores a roçar as fachadas e umas cadeiras com gente), três arcos em pedra distraem-me a curiosidade. Atravesso o do meio e entro numa praça maior.
Do lado nascente é um edifício único com arcadas semelhantes às por onde cheguei, paredes pintadas cor de tijolo e janelas regulares, tudo geometricamente arrumado, apesar das lojas e de um outro sem abrigo. Numa das janelas, um anúncio de uma imobiliária, “Se alquila”.
O lado poente é mais honesto, com edifícios irregulares no desenho das fachadas e número de andares, terminando no que deve ter sido uma fábrica e é agora uma série de lofts de grandes janelas envidraçadas e parede caiada.
Vou entrando na esperança de alguma magia escondida, apesar das motas estacionadas, das portas metálicas de enrolar grafitadas, o mais vulgar que há em Barcelona. Ao meio, um parque infantil e meia dúzia de grandes árvores numa geometria desorganizada e chão de areia. Ouvem-se crianças e pássaros pequenos e só distante o resto das coisas. Em volta, árvores de tronco mais fino, uma guarda de honra à majestade das outras, mais idosas.
Ao fundo continuam as arcadas e um café com mesas na rua aconchega-se na sombra certa. Ao aproximar-me, apercebo-me de que são três estabelecimentos separados.
Barcelona é uma cidade com alguma coisa para toda a gente. Os consumistas têm lojas e mercados para todos os preços; os amantes de música têm todo o tipo de concertos e salas de espectáculos, numerosas lojas de discos; os fãs de desporto têm futebol, motas, carros, ténis, os melhores do mundo; os amantes de arte têm Miró, Picasso, Gaudi e uma cena cultural contemporânea vibrante; os gourmets têm tapas em tascas soturnas ou requintados restaurantes; os que se querem perder têm toda a espécie de labirintos; os engatatões têm mulheres e homens bonitos para os gostos mais audazes ou mais comuns; os carteiristas têm todos estes distraídos com as suas paixões e aquele a quem o coração for partido, tem a Pedrera, o teleférico de Montjuïc ou as eternas obras da Sagrada Família de onde se suicidar.
A diferença primeira entre a Catalunha e Portugal, Barcelona e Lisboa parece ter sido enunciada com clareza por um amigo meu que falava já nos braços de Baco, copo de Martini na mão. Uma vive virada de costas para a outra. Da maneira óbvia, claro, uma sobre o sítio onde Tejo e Atlântico se confundem, a outra sobre o Mediterrâneo. Mas é mais que isso.
Barcelona sempre viveu para o futuro, Lisboa para o passado. Numa e noutra isto não é preto e branco, apenas um espírito que permanece. Nem sequer é necessariamente uma coisa boa ou má. É apenas uma maneira de ser, como as pessoas são nisto também diferentes. O meu amigo aliás, falava de pessoas, fui eu que me lembrei de como isso se podia aplicar às cidades.
Para mim, não é um juízo de valor. Muitas vezes temo tanto o futuro quanto lamento o passado. Pudera eu ser imóvel como um farol, contemplando o tempo todo e tomaria uma decisão. Nessa impossibilidade, declaro o meu amor por ambas as cidades.
É um amor condicional, veja-se, pois tanto lamento as aberrações de uma como da outra. O orgulho catalão causa-me tanta alergia como a saudade portuguesa. Todos os nacionalismos e seus derivados me causam uma irritação cutânea que procuro coçar enfiando os dedos no couro cabeludo.
Estranho, não é? A música sempre foi uma arma de patriotas e revolucionários. Por algum motivo temos hinos oficiais e não romances oficiais e quadros oficiais. E tantos dos compositores que canto lutaram com música pelo seu país.
Apaixonei-me e fui para Barcelona, mas tenho a noção de que o mais normal seria o contrário. Chegar primeiro, apaixonar-me depois. Raras são as pessoas que não se apaixonam por esta cidade entre o perfume antigo do Mediterrâneo e a modernidade pós-industrial. Comigo foi como disse. No dia a seguir a apaixonar-me, viajei para Barcelona e sendo boa portuguesa que sou, trouxe mais alguma saudade na bagagem. E achei que o Mediterrâneo tinha menos perfume que o Atlântico.
Nada disto foi dramático ou permanente. Apenas na Ópera e no grande Teatro, tudo tem de ser final e definitivo, para que depois de terminada a função, possamos voltar a palco e agradecer. Enquanto estamos vivos, viajamos tão facilmente entre lugares como entre pessoas, presentes e passadas, sempre curiosos sobre o que esconderá o próximo passo. Assim é a cidade.

Diálogo.

– Deixe-me apresentar-lhe. Este é o meu amigo... desculpe, não me disse o seu nome.
– É teu amigo e nem sabes o nome dele, Art?
– Pagou-me um pequeno-almoço de rei. Frango e cachupa. Logo, é meu amigo. Mas assim de repente, o nome...
Nenhum de nós conhecia Art há menos de vinte e quatro horas.
– Aquiles.
– Como o herói?
– Como o herói.
– Está tudo bem com o teu calcanhar? – E espreitou nessa direcção.
– Caro Aquiles, deixa-me apresentar-te a menina Athayde. Soprano de imenso potencial, será uma diva um dia! Encontrei-a sozinha no cais deserto.
– Clara.
Demos dois beijos na cara. Dois.
– Athayde com agá e i grego?
– Como adivinhaste?
– O teu tom de voz pressupunha alguma arrogância no nome.
– Estive a cantar, talvez seja disso.
– Cantar?
– O Aquiles aqui gosta de ópera! – Interpôs Art. – Gostas de ópera, não gostas?
Não respondi.
– Se preferires deixo cair o agá e o grego do i.
Comprazi-me com a intenção de insolência que continuava na sua voz.
– A menina Athayde perdeu o seu transporte para deixar Lisboa, por isso a convidei para a festa.
– Não sabia que ainda atracavam navios de passageiros nos cais desertos da cidade, pensei que apenas poesia. Ou era um cacilheiro?
Baixou os olhos, cerrados pelas pestanas pretas. Passou a tonta entre nós. Lembro-me de ela passar como uma nuvem carregada de chuva. Art seguiu-lhe o rabo com o olhar.
– Era um avião. Só depois de o deixar partir decidi que devia contemplar uma última vez o rio.
– Uma última vez?
– Sim, tenho novo voo daqui a – olhou para o relógio – sete horas.
– Posso perguntar para onde?
– Barcelona. – Respondeu Art pousando-lhe a mão no ombro.
– Turismo?
– Estudo e talvez trabalho.
– Ah, uma emigrante.
– São só três meses... – De novo Art a substituiu na resposta.