Estreou hoje a versão cinematográfica de David Fincher do primeiro livro da trilogia "Millennium" de Stieg Larsson, "Os Homens que Odeiam as Mulheres". Já havia uma versão sueca e nunca percebi muito bem a ciência americana dos remakes, mas o Fincher é o Fincher. Eu li os livros e vi a outra versão. Já sabia a história de trás para a frente, por isso dediquei-me mais aos atores, ao ambiente, à encenação gélida, lenta e violenta como só ele sabe.
Quem nunca tiver lido, visto, ouvido falar, vai levar mais uns socos no estômago ou pelo menos surpreender-se mais com a brutalidade da história, das imagens, numa tão imaculada paisagem. Seja como for, vale a pena ir ver. A banda sonora volta a ser de Trent Reznor e Atticus Ross, o Daniel Craig passa bem por sueco, os suecos são loucos (estes pelo menos) e a Rooney Mara é quase a Noomi Rapace sem chegar a ser. Até os nomes são aliterantes.
O poster que ilustra este post, ilustra também o meu local de trabalho, mas tentando não estragar muito a descoberta, vale a pena ver o genérico de abertura, ao som da "Immigrant Song" dos Led Zeppelin, voz de Karen O em cima dos arranjos de Reznor e Ross. O que é negro e se incendeia ou como um genérico consegue realmente resumir um filme.
É oficial. Não há mais Stieg Larsson para ler. Acabei ontem por volta das duas da manhã, as 715 páginas de "A Rainha no Palácio das Correntes de Ar" e além das inevitáveis olheiras, o síndrome de abstinência instalou-se bem instalado.
É verdade que thrillers, policiais, livros de espionagem há muitos, uns mais, outros menos inteligentes, uns mais outros menos bem escritos. Fui cliente de gente como o Frederick Forsyth e ainda sou do Le Carré, gostei dos filmes do Bourne e ando a pensar ler os romances originais do Ludlum. Em termos de "blockbusters" literários, nunca ferrei os dentes na saga da senhora Meyer sobre vampiros, mas li os Harry Potters todos e dois Dan Browns (estes últimos para poder dizer mal informadamente, confesso).
O Stieg Larsson segue algumas convenções do estilor policial-espionagem-thriller-blockbuster, com múltiplas linhas de acção cruzando-se, reviravoltas, revelações, intriga, lutas corpo a corpo ou com armas variadas, muita tecnologia pelo meio, etc. etc. Tem algumas qualidades não desprezíveis dentro do género e algumas que lhe dão credenciais do lado da literatura: as personagens, os seus ritmos e motivações são bem construídos, com tempo, sem incoerências muito maiores do que as que são naturais ao ser humano, com qualidades e defeitos. Como é natural os "maus" têm mais defeitos que qualidades, mas os "bons" não são propriamente "fáceis".
Nos três livros publicados, o tempo de introdução é longo, as situações e as personagens que nelas se movem são delineados com cuidado para que tudo possa resultar mais à frente e o vício da leitura instala-se facilmente. É interessante, dir-se-ia quase um trabalho jornalístico de investigação sobre pessoas que não existem.
A isto tudo some-se uma coerência temática notável. O tema é o "abuso de poder" que vai da unidade familiar nuclear, da situação mais íntima, ao estado e às suas instituições. Já falei aqui sobre o facto de existir um lado "cyberpunk" nisto tudo. Se alguém quiser fazer uma tese de Ciência Política sobre como a trilogia Millennium aborda uma certa imagem da Europa Social e das suas hipocrisias, força.
O problema é que o Stieg Larsson morreu. Não há mais. Eram supostos ser dez volumes e ficámos por três. Vai haver filmes, é certo, mas mais calhamaços com as desventuras da Lisbeth, Mikael e restantes, só se alguém pegar no fio à meada, facto não inaudito, mas não necessariamente aconselhável.
Quem ainda não leu, arme-se com os três volumes e parta para férias. Ainda por cima as edições portuguesas são pesadinhas, fazem exercício com os braços.
Pela hora zero do dia de hoje, morreu às minhas mãos, desfez-se em pedras nas páginas sob os meus dedos de leitor, Pedro Páramo de Juan Rulfo, coro de vivos e mortos confundios, alguns gritando outros gemendo, muitos murmúrios, alguns sussurros.
Acabei de ler e fiquei irrequieto, apeteceu-me caminhar pelas ruas em busca do calor, do vento, da chuva, a ver o que ouvia do que move e tortura as pessoas, as suas memórias e os seus desejos que um dia hão-de ser também memórias.
Enquanto lia, não sei porquê, imaginei como seria um filme assim em coro, cantado de baixo e de cima da terra. Fui investigar e no IMDB constam quatro: um com argumento do Carlos Fuentes (!), de 1967, mais dois, um de 1978 e outro de 1981 e um apontado a 2010. A ver se consigo ver algum.
Não me convenceram as cento e tal páginas da Cavalo de Ferro, editadas demasiado finas, com muitas frases promocionais pela frente, por trás e no fim mais uns chamamentos à leitura de outros livros, mas perdoo-lhes pela qualidade da escrita de Rulfo que não se perde na tradução bem anotada.
Mas isso sou eu que enquanto houver tinta e papel onde é impressa, vou reparar nestas coisas e de caminho aconselho este blog para quem gosta de livros, das suas capas e lhes dedica um amor táctil como dizia o Caetano.
Lá para terça-feira vai renascer Lisbeth Salander das cinzas e vou-lhe dedicar horas de insónia bem passadas.
Livre que estou do encantamento dos dois primeiros livros da triologia Millennium e enquanto o terceiro não me vem atazanar o juízo - parece que vai ser editado em Portugal no princípio de Julho com o nome "A Rainha no Palácio das Correntes de Ar" - vou dedicar-me a uma pilha de outros volumes que estiveram em espera enquanto eu devorava as mil e duzentas páginas do sueco.
Vale a pena espreitar as coisas que o José Mário Silva já disse sobre o assunto, até por serem interessantes, mas sobre a personagem que vai emergindo como principal nesta saga inacabada, Lisbeth Salander, apetecia-me acrescentar uns comentários.
Se é óbvio que o tal Mikael Blomkvist é um alter-ego do próprio Larsson, Salander parece mais peixe fora de água em romances policiais, a não ser que lhe apliquemos categorias que vêm mais de um nicho da ficção científica, como "cyberpunk".
Na Slashdot (obviamente), Lawrence Persson diz "Classic cyberpunk characters were marginalized, alienated loners who lived on the edge of society in generally dystopic futures where daily life was impacted by rapid technological change, an ubiquitous datsphere of computerized information, and invasive modification of the human body."
A descrição cola perfeitamente à senhora Salander, dez reis de gente com piercings, tatuagens, uma prodigiosa capacidade de invadir os computadores alheios onde encontra quase toda a informação que procura. Solitária, alienada e vivendo na margem da sociedade? Leiam os livros...
Salander é assim uma heroína da mesma ordem do Case do "Neuromancer" do Gibson e não vejo por que não se lhe possam aplicar as considerações que teci aqui, a propósito desse dito arquétipo de personagem. Note-se aliás que o próprio Gibson foi deslocando as suas histórias mais recentes de um hipotético futuro para um hiper-real presente.
Larsson acaba por nos propor, nas suas histórias, dois caminhos de investigação e desconstrução do sistema, o tradicional jornalístico e o "cyberpunk", e o que me parece interessante é que se deduza do resultado que um não pode sobreviver sem o outro, cada um com a sua ética e prática.
Na página 542 da edição paperback inglesa da triologia Millennium (em inglês, "The Girl With the Dragon Tattoo", em português, "Os Homens que Odeiam as Mulheres), diz-se a certa altura a propósito de um livro:
It was uneven styllstically, and in places the writing was actually rather poor - there had been no time for any fine-tuning - but the book was animated by a fury that not reader could help but notice.
Não consigo deixar de pensar que o falecido Stieg Larsson quando escreveu estas palavras, perto do final da história, pudesse também estar a emitir uma opinião sobre a sua própria escrita, um turbilhão que agarra o leitor sem grande piedade.
É verdade que autores como Dan Brown e calculo que alguns copycats sabem agarrar leitores no ritmo da história e no desenrolar da intriga, escolhendo temas de apelo universal mas essencialmente desligados da realidade de todos os dias, teorias da conspiração, disputas religiosas milenares e outros ajustes irreais a uma determinada visão do mundo.
Stieg Larsson prefere temas como o abuso de poder, na família, nas empresas, no mundo da alta finança, prefere heróis imperfeitos colocados perante escolhas absolutamente pessoais e de moralidade nem sempre clara.
Obrigado ao Marcelo Teixeira que me chamou a atenção para o fenómeno que eu distraidamente estava a deixar passar ao lado.
Só mais duas notas.
Li a edição inglesa por ter visto que a portuguesa tinha sido traduzida do inglês? Algum motivo para isto? Ninguém traduz do sueco? Note-se que a tradução correcta do título original é a portuguesa.
Está já pronto um filme baseado neste primeiro volume, feito na Suécia mas que não me espantava que viesse a ter remake americano. Fica aqui abaixo o trailer (tem bom aspecto) na língua original que é por causa dos spoilers. E agora vou já de seguida pegar no segundo volume, "The Girl Who Played With Fire".